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domingo, 28 de fevereiro de 2021

LEOPOLDO DE ALMEIDA: O ESCULTOR DO PADRÃO


Perante as recentes declarações do deputado do PS Ascenso Simões, em que propunha a destruição do Padrão dos Descobrimentos, o Cabo Não presta a sua homenagem ao autor do conjunto escultórico do monumento de Belém, Leopoldo de Almeida. Com esta homenagem, convidamos os leitores à reflexão sobre o discurso político acerca de História e Património, e como apesar de cada período escolher os seus vilões e os heróis entre as figuras do passado, é um dever do Estado e das populações a conservação do Património Cultural, como forma de preservar a memória colectiva e de ser fonte de reflexão para as gerações vindouras. Recorrendo ao aforismo do setecentista Edmund Burke: "Aqueles que não conhecem a História, estão condenados a repeti-la"


O Mestre Leopoldo de Almeida (de bata branca), junto da sua estátua equestre de D. João I

Leopoldo Neves de Almeida (1898-1975) foi um escultor e professor português, pertencente à segunda geração modernista. Revelou desde cedo talento para o desenho e para a modelação, tendo ingressado aos 15 anos na Escola de Belas-Artes de Lisboa, onde aprende com grandes mestres como Simões de Almeida (sobrinho), Luciano Freire e Columbano Bordalo Pinheiro.

No dealbar da década de 1930, com a colaboração na construção do Monumento ao Marquês de Pombal, inicia aquela que será uma longa carreira ao serviço da arte pública. Em 1934 realiza baixos-relevos para a fachada do Cineteatro Éden e em 1937 o Monumento a António José de Almeida, em associação com Pardal Monteiro.

Um dos baixos-relevos concebidos por Leopoldo de Almeida para o Cineteatro Éden, Lisboa

Paralelamente à fervorosa actividade criativa, Leopoldo de Almeida desenvolve uma carreira docente, que se inicia em 1934 com o seu retorno à Escola Superior das Belas-Artes de Lisboa, desta vez como professor. A sua relação com esta instituição vai estender-se por mais três décadas, até à sua aposentação em 1965.

Na década de 1940 vai alcançar o pico da carreira artística, com a intervenção na Exposição do Mundo Português. No conjunto escultórico por si produzido, estarão incluídas duas das mais emblemáticas obras da estatuária pública comemorativa daquele período: uma colossal representação feminina da Soberania e o Padrão dos Descobrimentos, feito em parceria com o arquitecto Cottinelli Telmo, um monumento em homenagem às principais figuras do mais insigne período da História de Portugal.



Para a concepção das esculturas do Padrão dos Descobrimentos, Leopoldo de Almeida foi colher inspiração às personagens representadas nos Painéis de São Vicente de Fora, atribuídos ao pintor de corte de Afonso V Nuno Gonçalves, uma janela para os vestuários e moda da época.

A arquitectura ficou a cargo de Cottinelli Telmo, assumindo-se o monumento como uma versão estilizada de uma caravela, com a estatuária colocada em duas rampas que convergem para a "proa". A posição cimeira é ocupada pelo Infante D. Henrique, com uma caravela na mão direita e um mapa na esquerda, figura central e primeiro impulsionador da expansão marítima portuguesa.

Ao mesmo tempo a sua geometria remete-nos para os antigos padrões portugueses, marcos de pedra instalados pelos marinheiros portugueses nas terras recém-descobertas. Quando visto a partir do Mosteiro dos Jerónimos, o monumento assume a forma de uma cruz latina. Numa observação mais atenta é revelada no seu interior uma espada que aponta para o chão: este simbolismo pretende representar a relação próxima entre a cruz e a espada, no muitas vezes violento processo de colonização e expansão do cristianismo.



Para além dos mais ilustres exploradores, navegadores e aventureiros associados a este período da História de Portugal, como Vasco da Gama, Bartolomeu Dias, Fernão de Magalhães ou Fernão Mendes Pinto, figuram também no Padrão personalidades eminentes da alta cultura e da ciência da época, como Luís de Camões, Nuno Gonçalves e Pedro Nunes.

A primeira versão em materiais perecíveis, construída em gesso e suportada por uma estrutura metálica, seria removida em 1943. Apenas em 1960, por ocasião dos 500 anos da morte do Infante D. Henrique, seria reconstruído na sua versão definitiva de betão e pedra de lioz.

A área envolvente seria dotada de uma rosa-dos-ventos com 50 metros de diâmetro, oferecida a Portugal pela República da África do Sul. Já em contexto democrático, o interior do monumento seria intervencionado para potenciar a sua fruição turística, com a inauguração dos espaços do miradouro, do auditório e das salas de exposições, abrindo uma nova fase na vida do monumento - o Centro Cultural das Descobertas. O Padrão dos Descobrimentos é actualmente um dos monumentos mais visitados em Lisboa, tendo recebido só em 2019 mais de 300 mil visitantes.     



Luís Alves Carpinteiro | Cabo Não

quarta-feira, 29 de agosto de 2018

O RELUTANTE CAMINHO DE PORTUGAL PARA A EUROPA - PARTE II

Depois do 25 de Abril:


Cerca de 15 anos medeiam entre o primeiro acordo comercial de Portugal com a CEE em 1972, ainda sob a égide do Estado Novo, e a integração plena no início de 1986.

No dealbar da década de 1970 o escudo português enfrenta uma acentuada desvalorização que será agravada pela Crise Petrolífera de 1973. Soma-se um conflito sem fim à vista que quebra o ciclo de prosperidade colonial e drena recursos a um ritmo alarmante.

O abandono da EFTA por parte da Grã-Bretanha e a sua subsequente adesão ao mercado comum vai converter a CEE no principal parceiro comercial da economia portuguesa, absorvendo cerca de 55% de todas as exportações em tendência crescente. Mesmo antes do início do processo de adesão ao mercado comum, a tendência integracionista num sistema económico europeu era já uma realidade incontestável.

Em Abril de 1974 o povo português desperta da longa noite da ditadura. O processo revolucionário é complexo e de geometrias políticas variáveis, o parto por vezes caótico de uma democracia sem referências passadas. A fragilidade decorrente do processo poderá comprometer a recuperação económica de um Portugal privado da exploração de recursos coloniais. A necessidade urgente de liquidez financeira torna imperativa a abertura de novos mercados e parcerias comerciais.


Jogadores-chave mantiveram-se atentos ao processo revolucionário; Nesta foto Ramalho Eanes recebe o vice-presidente norte-americano debaixo do escrutínio do embaixador Frank Carlucci. 

Vários esforços paralelos vão ser efectuados no sentido de compensar esta nova realidade entre os quais o reforço da participação portuguesa nos organismos em que está presente, acordos bilaterais com outras nações ou cláusulas de nação favorecida com os países comunistas do COMECON, primeiro em África, depois na Ásia.

É portanto sem estranheza que, findada a fase mais atribulada do PREC, a adesão à Comunidade Europeia se converta numa demanda do governo português, com o pedido de adesão a ser formalizado em Março de 1977. Portugal contava com a Europa para recuperar do atraso crónico e para cimentar os valores de uma democracia incipiente.

A primeira demonstração pós-revolucionária de compromisso com a aproximação à Europa é tomada pelo I Governo Constitucional (1976-1978), encabeçado por Mário Soares. É sob a égide do governo socialista que o Ministro dos Negócios Estrangeiros Medeiros Ferreira se dirige a Bruxelas para assinar um protocolo adicional ao acordo comercial de 1972.

A viragem para a Europa não é consensual entre os portugueses. Uma extrema-esquerda anticapitalista não olha com bons olhos a incorporação de Portugal numa organização que considera um “baluarte capitalista”. A direita autárcica receia igualmente as consequências da adesão para a “identidade portuguesa” e “produção nacional”. A nível parlamentar a decisão é fomentada pelos partidos do arco constitucional (PS, PPD-PSD e CDS) e sofre oposição do PCP e da extrema-esquerda.

Em 1979 as eleições intercalares são saldadas por uma vitória da Aliança Democrática (PPD-PSD, CDS e PPM) que obtêm maioria absoluta em parlamento. Se dúvidas houvera em relação ao rumo europeísta, estas são dissipadas por Francisco Sá Carneiro que define a adesão à CEE como a "prioridade das prioridades". O governo português vai então recorrer à ajuda financeira do Fundo Monetário Internacional para acelerar o seu desenvolvimento com vista a suavizar a integração no mercado único.
Mário Soares recebe o presidente francês François Mitterand (1981); As boas relações e a energia de Soares revelaram-se fundamentais para a promoção da candidatura portuguesa. 

As negociações de adesão de Portugal e Espanha à CEE foram um processo que se distendeu no tempo, prolongando-se por quase uma década entre 1977 e 1986. São vulgarmente englobadas no “terceiro alargamento” da União Europeia – destinado aos povos do sul da Europa (na sequência da adesão da Grécia em 1981).

Portugal antecipara-se à Espanha requerendo adesão a 28 de Março de 1977, enquanto que os espanhóis só o fizeram a 16 de Junho do mesmo ano. Actualmente é praticamente consensual que Portugal poderia potencialmente ter aderido em menos tempo – tomemos o exemplo grego – só não o tendo feito devido a uma paralelização nefasta das negociações ibéricas e à capitalização do processo por parte de estados-membros. Diferendos quanto às contribuições para o orçamento comunitário e o coevo processo da revisão da Plano Agrícola Comum desempenharam um papel central no arrastar das negociações.

Sem o saber, Portugal entrava num “comboio em andamento”. Após a estagnação da década de 70, a CEE desencadeava um ciclo de aceleramento e expansão que mutaria a alma do projecto. O alargamento ibérico coincidiu com o Ato Único Europeu (18 de Fevereiro de 1986) e foi seguido do Tratado de Maastricht (7 de Fevereiro de 1992). A livre-circulação de pessoas, bens e capitais postulada pelo AUE e a unificação política e monetária de Maastricht fundariam uma nova era de colaboração europeia cada vez mais estreita.


Fontes Bibliográficas:
CHAVES, Miguel Matto (2013). As Negociações de Adesão de Portugal à CEE. Almedina.
MATTOSO, José (dir.) MEDEIROS FERREIRA, José (coord.) (1994). História de Portugal, vol. 8, pp. 138-1973. Editorial Estampa.
CUNHA, Alice; "Portugal, Espanha e Europa" in Relações Internacionais, nº 48, pp. 25-41. IPRI - Universidade Nova de Lisboa (2015).


LAC

sexta-feira, 24 de agosto de 2018

O RELUTANTE CAMINHO DE PORTUGAL PARA A EUROPA - PARTE I

Antes do 25 de Abril:


Durante o período do Estado Novo Portugal nutriu uma relação paradoxal com o resto da Europa, na qual um regime autoritário contrário aos “valores ocidentais” era tolerado numa contradição ideológica aparente. Esta permissividade foi motivada por razões de ordem diversa que oscilaram consoante o momento histórico e a conjuntura geopolítica dele decorrente.

Nos seus primórdios na transição da década de 20 para 30, a formação de um estado autoritário em Portugal está alinhada com uma Europa predominantemente antidemocrática.

Na fase inicial da Segunda Guerra Mundial Portugal assume uma "neutralidade equidistante" que tanto lhe permite fornecer matérias-primas à Alemanha de Hitler como apoiar logisticamente os britânicos. A viragem da guerra vai permitir ao regime assumir uma "neutralidade colaborante" com os Aliados, de forma a melhor posicionar-se no advento de um novo concerto europeu. A derrocada das Potências do Eixo e as vagas de democratização que se seguiram vão tornar o regime crescentemente anacrónico e isolado politicamente. Porém diversos factores de natureza geográfica e geopolítica vão abonar a favor da integração de Portugal numa esfera de influência ocidental.

Perante o colapso eminente do III Reich os "Big Three" reúnem-se em Yalta para deliberar sobre o novo concerto europeu; É já notório o clima de suspeição que cavará um fosso entre os "aliados de ocasião" (Fevereiro de 1945).

A nova ordem do Pós-Guerra confirmaria a ascensão de dois poderes tendencialmente hegemónicos que bipolarizarão o mundo em esferas de influência durante quase meio século: Os Estados Unidos da América e a União Soviética. No reverso da roda encontravam-se as velhas potências imperiais europeias, que além de enfrentarem a árdua tarefa de reconstrução das suas sociedades, sentiam o soprar forte dos ventos da mudança que ameaçam desagregar os seus impérios coloniais.

A primeira base militar estrangeira nos Açores foi estabelecida pelos britânicos em 1943. A importância estratégica continuada do arquipélago atlântico revela-se um trunfo negocial nas mãos dos diplomatas portugueses. Do mesmo modo, a evolução da Doutrina Truman (1947) e o auge da retórica anti-comunista da Guerra Fria fará com que regimes como o de Salazar sejam tolerados e até vistos com alguma benevolência pelo seu papel na repressão da expansão de ideias comunistas.

Portugal beneficia ainda da sua posição de interlocutor ibérico preferencial; debaixo da ditadura franquista a Espanha assume-se como tendencialmente mais isolacionista e não se demarca de uma proximidade desconfortável das nações derrotadas do Eixo.

É da disforia generalizada do Pós-Segunda Guerra Mundial, da “miséria” e do “medo” da ameaça soviética, que nascerão os primeiros projectos de cooperação europeia. A Europa ocidental congregar-se-á em torno dos Estados Unidos para fazer face à expansão do comunismo internacionalista, corporizado pela União Soviética de Estaline.

Fica patente a formação de um bloco ocidental a partir da formação da aliança político-militar consagrada pelo Tratado do Atlântico Norte em 1949, secundada pela ajuda financeira americana aos estados europeus através dos Planos Marshall. Embora reticentemente, Portugal vai aderir a ambos.

As divergências políticas são notórias - Portugal possui o único regime de cariz não-democrático entre os membros da NATO - porém "os portugueses desejam pertencer à NATO e os americanos desejavam tê-los lá".      


Assinatura do Tratado do Atlântico Norte com presidente norte-americano Harry Truman em destaque; Portugal representado pelo embaixador Pedro Teotónio Pereira (24-08-1949, MPI-Getty Images).


A inclusão nos Planos Marshall é tardia e plena de contradições: se inicialmente Portugal rejeita qualquer ajuda, assumindo-se inclusive como possível doador, numa segunda fase já aceitava a ajuda "quanto mais melhor". Isto deveu-se principalmente à deterioração da balança de pagamentos em 1948 que levou Portugal a apresentar à OECE um plano de reconstrução económica que só seria parcialmente satisfeito.

Em suma, Portugal foi aderindo como membro-fundador a quase todos os projetos intergovernamentais que se fizeram no mundo ocidental: a OECE (1948), a NATO (1949) ou a EFTA (1960). A integração portuguesa é no entanto relutante e seletiva. Deve ser entendida segundo os quadros ideológicos de natureza soberanista e autárcica do regime salazarista: recetivo a projetos de cooperação económica e até militar, mas instintivamente receoso dos que exigissem, de forma real ou aparente, uma partilha de soberania.


As excepções que confirmam esta regra são a não-inclusão na CEE e numa menor dimensão a entrada tardia na ONU em 1955 (não por vontade própria, a adesão foi barrada pelo veto da União Soviética em 1946). Talvez mais importantemente, Salazar receava que o novo ambiente de cooperação internacional encorajasse outros países a imiscuírem-se nos “assuntos portugueses”, nomeadamente “se traduzisse em pressões (…) sobre a orientação política do regime ou a sua soberania colonial”.


PARTE 2 CARREGUE AQUI


Fontes Bibliográficas:
ROLLO, Maria Fernanda (1994). Portugal e o Plano Marshall in Análise Social, vol. 29, nº 128, pp. 841-869.
TEIXEIRA, Nuno Severiano (1999). Portugal e a NATO in Nação & Defesa, nº 89, 2ª série, pp. 15-41.
PEREIRA, Pedro Cantinho (2006). Portugal e o Início da Construção Europeia in Nação & Defesa, nº 115, 3ª série, pp. 235-255.
MATTOSO, José (dir.) ROSAS, Fernando (coord.) (1994). História de Portugal, vol. 7, pp. 399-402, 463-466. Círculo de Leitores.
MENESES, Filipe Ribeiro (2009). Salazar. Dom Quixote.
NOGUEIRA, Franco (1980). Salazar: O Ataque. Atlântida Editora.


LAC

segunda-feira, 16 de julho de 2018

DA REVOLUÇÃO À CONSOLIDAÇÃO DEMOCRÁTICA (1974-1976): PARTE III


















Discurso de Pinheiro de Azevedo no Terreiro do Paço (Novembro, 1975).

(continuação)

O VI Governo Provisório do Comandante Pinheiro de Azevedo procurou amenizar o fervor revolucionário e afastar o extremismo gonçalvista. O PS e o PPD retomam o poder executivo, porém os círculos extremistas de esquerda encaram o afastamento de Vasco Gonçalves como uma traição à alma da revolução.

No dia 10 de Novembro de 1975 precipita-se uma greve dos trabalhadores da construção civil que exigem negociar com o governo. Dois dias depois 100 mil operários efectuam um cerco ao Palácio de São Bento deixando os deputados e o governo reféns. Após 36 horas, Pinheiro de Azevedo é forçado a ceder às exigências dos operários. Sob o auspício de um guerra civil a Assembleia Constituinte discute a hipótese de transferir o parlamento para o Norte e subdividir o país em dois sectores.

A situação político-militar agudizava-se e o Conselho da Revolução destitui Otelo Saraiva de Carvalho do Comando da Região Militar de Lisboa substituindo-o por Vasco Lourenço. O confronto armado parece inevitável e na madrugada de 25 de Novembro de 1975, pára-quedistas da Base Escola ocupam as bases de Tancos, Monte Real, Montijo e o Comando da 1ª Região Aérea de Monsanto. O Presidente Costa Gomes declara o estado de sítio em Lisboa e os Comandos da Amadora capturam as posições dos revoltosos em Monsanto.

Dá-se a emergência do Coronel Ramalho Eanes como figura central das forças da ordem. Com o apoio dos Comandos aniquila o golpe militar à nascença e põe fim à situação descontrolada de conspirações militares. Estabiliza-se o PREC: a nação pode finalmente sarar as feridas e retomar a via da democratização.


Cartaz da campanha presidencial de Ramalho Eanes (1976).

É neste clima de provações que o povo português é uma vez mais chamado às urnas para eleger uma Assembleia Legislativa e um novo Presidente da República. As eleições de 1976 trouxeram a vitória do Partido Socialista, que obtém 36% dos votos com Mário Soares a ocupar o cargo de primeiro-ministro. Após breve intervalo vão decorrer as eleições presidenciais nas quais Ramalho Eanes apoiado por CDS, PPD e PS enfrenta Otelo Saraiva de Carvalho e Pinheiro de Azevedo.

A 27 de Junho de 1976, Ramalho Eanes vence as eleições presidenciais com 61% dos votos, com o estatuto de herói do 25 de Novembro a facilitar a sua ascensão ao poder. A Assembleia Constituinte redige a Constituição Portuguesa de Abril de 1976 que vai assinalar a conclusão do processo revolucionário iniciado dois anos antes.




Francisco Alexandre Caldas

DA REVOLUÇÃO À CONSOLIDAÇÃO DEMOCRÁTICA (1974-1976): PARTE II



"Um problema difícil" (João Abel Manta).

(continuação)

Os acontecimentos precipitam-se: o COPCON recebe informações secretas que está em marcha um golpe militar de direita e contrariamente, o General Spínola toma conhecimento de uma operação da esquerda radical que tenciona eliminar elementos conservadores que fica conhecida como "Matança da Páscoa". O ano de 1975 começava sob o auspício da violência política.

No dia 11 de Março de 1975, tropas pára-quedistas suspeitas de estarem ligadas à facção spinolista atacam o Regimento de Artilharia Ligeira (RAL1) em Lisboa. Ao princípio da tarde os pára-quedistas levantam o cerco e os lados opositores encaram-se fraternalmente. A intervenção do Comandante Costa Correia, legitimado pelo seu prestígio como herói de Abril, é vital na dissuasão de um confronto fratricida.

O Presidente Costa Gomes acusa em directo o General Spínola de ser responsável pelo golpe. Procede-se à reunião de uma Assembleia Extraordinária do MFA com vista a extinguir a Junta de Salvação Nacional. Em contrapartida o Conselho de Estado é extinto e suplantado pelo Conselho da Revolução que propõe um plano para as nacionalizações e a reforma agrária.

Com o 11 de Março assiste-se a uma nova viragem à esquerda do processo revolucionário: cresce a influência do círculo sob a égide de Vasco Gonçalves que reforça as pretensões extremistas do IV Governo Provisório (26 de Março de 1975) e do V Governo Provisório (8 de Agosto de 1975).

A 2 de Abril iniciam-se a primeira campanha eleitoral para a Assembleia Constituinte. A 11 de Abril é assinado o Pacto MFA-Partidos que reforça os poderes do MFA e do Conselho da Revolução. As eleições de 25 de Abril de 1975, às quais afluem 98% dos portugueses, é saldada por uma vitória do PS que reúne 38% das intenções, com o PPD a receber 26% e o PCP 12,5%.

Este resultado eleitoral contraria a orientação política até então seguida pelo MFA o que motiva o Conselho da Revolução a apelar à aceleração do PREC.

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Capa da revista Times (11 de Agosto de 1975).

O Partido Comunista de Álvaro Cunhal incita o movimento agrário no interior do país, com particular incidência no Alentejo, debaixo do mote de "a terra a quem a trabalha". Na região norte do país predominam os sectores conservadores e católicos que atacam as sedes e boicotam as sessões de esclarecimento dos comunistas. Um fosso ideológico abre-se entre a população portuguesa e as agendas políticas radicalizam-se de parte a parte.

O Partido Socialista de Mário Soares demarca-se dos comunistas e confronta as aspirações gonçalvistas. Vasco Gonçalves assume uma voz inconformista e num discurso público proclama: "Hoje põe-se este problema sem dúvidas nenhumas, só há duas alternativas ou se está com a revolução ou se está com a reacção, não há terceiras vias nem neutros aqui!"



Os militares mais moderados tentam apaziguar a situação e é criado o Grupo dos Nove, liderado por Melo Antunes. O grupo avança com uma proposta de transição pacífica para a democracia e prepara-se para agir militarmente na eventualidade de uma intentona gonçalvista. Nesta conjuntura política Otelo Saraiva de Carvalho revela-se um elo de ligação precioso entre os dois movimentos, ora a favor dos Nove ou auxiliando os gonçalvistas com recurso ao braço armado do COPCON.

Na Assembleia do MFA em Tancos, o governo de Vasco Gonçalves é derrubado por uma aliança entre o Grupo dos Nove, o Partido Socialista e membros afectos a Otelo Saraiva de Carvalho. Seria suplantado pelo sexto e último governo provisório, encabeçado por Pinheiro de Azevedo.

PARTE 3 CARREGUE AQUI



Francisco Caldas Alexandre

DA REVOLUÇÃO À CONSOLIDAÇÃO DEMOCRÁTICA (1974-1976): PARTE I



Militar remove retrato na sede da PIDE (Eduardo Gageiro).

Após mais de quatro décadas de existência o regime autoritário do Estado Novo é deposto por um movimento de jovens oficiais do Exército Português. O percurso final do Salazarismo (1968-1974) caracteriza-se pelo arrastar de uma guerra de contra-insurgência travada nas colónias africanas, uma crise financeira no início da década de 70, desavenças internas dentro do regime e o recrudescer de descontentamentos em diversos sectores da sociedade.

Umas forças armadas desgastadas com um conflito bélico sem fim à vista, afronta-se com o decreto-lei nº 353/73 que facilitava aos oficiais contratados pelo Exército o acesso aos quadros permanentes mediante um curso intensivo na Academia Militar. Este acto justificado pela escassez de oficiais na frente de guerra foi contestado pelos oficiais de carreira que viam as suas promoções sucessivamente adiadas.

Decididos a pôr fim ao "estado a que isto chegou" o Movimento das Forças Armadas (MFA) inicia operações, planeadas e lideradas pelo Comandante Otelo Saraiva de Carvalho, tomando diversas posições estratégicas em Lisboa. Na madrugada do dia 25 de Abril de 1974 o Marcello Caetano é capturado no Quartel do Carmo, onde se refugiara, acedendo render-se mediante a entrega do poder ao General António de Spínola para que "o poder não caia na rua"; o Presidente da República Américo Thomaz é igualmente aprisionado e mandado para o exílio no Brasil, destino que irá partilhar com Caetano.


Momento de tensão na Rua do Arsenal com Salgueiro Maia em primeiro plano (Alfredo Cunha).

Após a euforia inicial e alguns incidentes entre a população e agentes da PIDE/DGS, procede-se à libertação dos presos políticos das prisões de Peniche e Caxias no dia 26 de Abril. Para sustentar o recém-criado estado democrático forma-se a Junta de Salvação Nacional, liderada pelo Presidente António de Spínola, cuja composição era integralmente militar. Este novo corpo governativo depara-se com o desafio de pôr termo ao conflito ultramarino e conter as exaltações sociais que se começavam a evidenciar.

Proclamação da Junta de Salvação Nacional (26 de Abril de 1974).

É neste clima tenso que toma posse o I Governo Provisório, liderado pelo Professor Adelino de Palma Carlos. Esta solução vai alcançar um fim abrupto com a queda do governo em 11 de Julho de 1974 com a demissão de Palma Carlos. Será sucedido pelo Coronel Vasco Gonçalves que forma o II Governo Provisório.

O Presidente Spínola demarca-se do MFA na questão da descolonização, privilegiando a solução federalista que propusera em "Portugal e o Futuro". Esta é a primeira fractura no seio do movimento revolucionário. O general tentará manter as rédeas do poder apelando à "maioria silenciosa", na esperança de incitar uma demonstração de força por parte dos sectores mais conservadores da sociedade.

Uma manifestação de apoio a Spínola agendada para 28 de Setembro é cancelada e o General tenta declarar o estado de sítio, pedido que lhe é no entanto recusado. A população lisboeta ergue barricadas e paira o medo de um golpe conservador. Na sequência do incidente o General Spínola vai-se demitir ocasionando a queda do II Governo Provisório.

O General Costa Gomes toma posse como Presidente da República e Vasco Gonçalves é novamente convidado a liderar o III Governo Provisório. Este novo corpo governativo utilizará o COPCON de Otelo de Saraiva de Carvalho para se manter no poder e sufocar a oposição. É durante este período que uma constelação de partidos e pequenos movimentos começam a ter uma participação mais activa sendo de destacar o Partido Socialista de Mário Soares, o Partido Comunista de Álvaro Cunhal e o Partido Popular Democrata de Sá Carneiro.

A sociedade portuguesa é acometida por uma agitação potencialmente explosiva propulsionada pelas clivagens políticas entre as massas radicalizadas à esquerda ou à direita. Com o General Spínola refugiado em Espanha e as vozes extremadas nas ruas receia-se um ataque ao poder que parece estar eminente. Estavam formadas as condições para o Verão Quente de 1975.



Francisco Alexandre Caldas

segunda-feira, 28 de maio de 2018

O GOLPE MILITAR DE 28 DE MAIO

Neste dia, no ano de 1926, dava-se um golpe militar, promovido por uma elite do Exército português, que punha fim à experiência da Primeira República e instituía uma ditadura militar.

A vida política do regime republicano, instaurado em 1910, tinha sido pautado ao longo dos seus 16 anos por um clima de instabilidade constante com divisões internas, amotinações militares, greves sindicais, crises económicas e incapacidade governativa.

A entrada de Portugal na Primeira Grande Guerra, durante a administração do Partido Democrático de Afonso Costa, revelar-se-ia fatal para as ambições do regime republicano, que ao expandir desproporcionalmente as forças armadas provocou a emergência de uma classe militar poderosa e influente, com a capacidade e a vontade para o derrubar.

No ano de 1921 forças militares sequestraram diversas figuras destacados do republicanismo, entre as quais o herói da rotunda Machado Santos, procedendo às suas execuções sumárias no Arsenal da Marinha. Este acto de violência polítca provocou ondas de choque entre a população e as forças armadas que acusa o decadente regime republicano de não ter controlo da situação. Recrudesciam e reuniam apoios os movimentos oposicionistas ao regime republicano.

As movimentações do 28 de Maio partem de três frentes: de Braga parte o Gen. Gomes da Costa, de Évora o Gen. Óscar Carmona e em Lisboa está o Comdt. Mendes Cabeçadas. A resistência é inexistente e o apoio popular quase unânime por parte de uma população saturada de um estado de desordem sem fim à vista.

Desfile de tropas no 28 de Maio de 1926 (Wikimedia Commons).

Na sequência do golpe forma-se uma junta governativa presidida pelo Comandante Mendes Cabeçadas que assume um posicionamento moderado de continuidade constitucional, demarcando-se da linha mais dura. Pouco meses demorará para ser afastado compulsivamente e substituído pelo seu antigo aliado, o General Gomes da Costa.

Segue-se um processo de suspensão de liberdades cívicas, como a instituição da censura prévia. Após o afastamento de Gomes da Costa por Óscar Carmona, abre-se o caminho para a ascensão de António de Oliveira Salazar que vai paulatinamente afirmar-se como homem forte do regime.



Fontes Bibliográficas:
JOAQUIM, Vieira (1999). Crónica em Imagens: Portugal Século XX (1920-1930), Círculo de Leitores.
MATTOSO, José (dir.) Ramos, Rui (coord.) (2001). História de Portugal: A Segunda Fundação Vol.VI, Editora Estampa.


FAC

quarta-feira, 25 de abril de 2018

PIDE-DGS NO FESTIVAL VILAR DE MOUROS


Em Agosto de 2010 a revista Sábado publicou um relatório elaborado por um agente da PIDE-DGS enviado no Festival de Vilar de Mouros.

No finais da década de 60 tomam lugar nos Estados Unidos da América os primeiros festivais de música Rock para a juventude. O "Summer of Love" da geração hippie americana ficou imortalizado na memória popular daqueles anos de contestação e de reforma dos costumes, atingindo o seu expoente máximo nos festivais de Monterey e Woodstock.

Jimi Hendrix e Brian Jones (Rolling Stones) no Festival Pop de Monterey (1967)

No início de 1970 surgem as primeiras iniciativas de implementar este formato em Portugal. A primeira tentativa ocorre na mata da Escola Salesiana do Estoril quando polícia de choque reprime violentamente as centenas de estudantes que ali se haviam concentrado para ouvir bandas como os Quarteto 1111, Psico, Objectivo e Chinchilas, entre outros.

No ano seguinte, verificam-se novos incidentes no primeiro Cascais Jazz quando polícia de choque volta a carregar sobre a multidão e detém o contrabaixista da banda de Ornette Coleman, Charlie Haden, alegadamente por ter dedicado uma música à libertação das colónias.

Mas em Portugal esta época ficaria incontornavelmente marcada pela primeira edição do festival Vilar de Mouros, decorrida nos dias 7 e 8 de Agosto de 1971. Embora entre 65 e 68 se tenham realizado quatro edições anteriores, dedicadas exclusivamente à música folclórica portuguesa, este momento marcante da vida cultural portuguesa é assumido pelo festival como o da sua fundação.

O festival Vilar de Mouros foi a formulação de um sonho alimentado pelo Dr. António Barge de criar um grande evento musical ao ar livre para a juventude portuguesa. O festival encontrava-se sobre o escrutínio da polícia política do regime desde a edição de 1968, quando o público entoara em uníssono com Zeca Afonso várias canções proibidas pela censura. Em 1971 seria a vez de fazer um "Woodstock português", trazendo grandes nomes da cena Rock internacional às margens do rio Coura, como Elton John e Manfred Mann.

Flyer publicitário da primeira edição do Festival Vilar de Mouros

Fotografia restaurada do Vilar de Mouros '71 (VISÃO / GLOBAL IMAGES)

Alarmados pelo perigo que estes festivais representavam para os "bons costumes" e porque eram campo fértil para ideias políticas consideradas subversivas, a recentemente rebaptizada DGS prontamente expediu um dos seus agentes para espiar o festival. É o relatório deste agente que vos deixo, que corre o risco de soar caricato na actualidade mas demonstra a mentalidade da época:

“Dias antes do festival, foram distribuídos, nas estradas do País e nas estradas espanholas de passagem de França para Portugal, panfletos pedindo aos automobilistas que dessem boleias aos indivíduos que iam ver o festival.
No 1º dia, o espectáculo começou às 18h00 e prolongou-se até às 4 da manhã.
Ao anoitecer, o organizador, um tal Barge, anunciou que tinham sido vendidos 20 mil bilhetes (a 50$00 cada).

Esperavam vender 50 mil bilhetes para cobrir as despesas, que seriam aproximadamente a 2.500 contos.

Diziam que tiveram de mandar vir o conjunto Manfred Mann de Inglaterra, mas parece que estava no Algarve, e por isso, a despesa com eles não foi tão grande como parecia.

Um dos cantores, Elton John, causou desde o começo má impressão, com os seus modos soberbos e as suas exigências: carro de luxo para as deslocações, quartos de luxo para os acompanhantes e guarda-costas, etc.
O recinto do festival era uma clareira cercada de eucaliptos, com um taipal à volta e uma grade de arame do lado do ribeiro.

Na noite de 7 estavam muitos milhares de pessoas e muita gente dormiu ali mesmo, embrulhada em cobertores e na maior promiscuidade.
Entre outros havia:

crianças de olhar parado indiferentes a tudo.

grupos de homens, de mão na mão, a dançar de roda.

um rapaz deitado, com as calças abaixadas no traseiro.

um sujeito tão drogado que teve de ser levado em braços, com rigidez nos músculos.

relações sexuais entre 2 pares, todos debaixo do mesmo cobertor na zona mais iluminada

sujeitos que corriam aos gritos para todos os lados.

bichas enormes a comprar laranjadas e esperando a vez nas retretes (havia 7 ou 8 provisórias) mas apesar disso, houve quem se aliviasse no recinto do espectáculo.
porcaria de todo o género no chão (restos de comida, lama, urina) e pessoas deitadas nas proximidades.

Viam-se algumas bandeiras. Uma vermelha com uma mão amarela aberta no meio (um dos símbolos usados na América pelos anarquistas); outra branca, com a inscrição “somos do Porto” com raios a vermelho e uma estrela preta.
A população da aldeia, e de toda a região, até Viana do Castelo, a uns 30 km de distância, estava revoltada contra os “cabeludos” e alguns até gritavam de longe ao passar “vai trabalhar”. Foram vistos alguns a comer com as mãos e a limparem os dedos à cabeleira.
Viam-se cenas indecentes na via pública, atrás dos arbustos e à beira da estrada.

Em Viana do Castelo dizia-se que os “hippies” tinham comprado agulhas e seringas nas farmácias da cidade.
Havia muitos estudantes de Coimbra, e outros que talvez fossem de Lisboa ou do Porto. Alguns passaram a noite em Viana do Castelo em pensões, e viam-se alguns de muito mau aspecto, parece que vindos de Lisboa, que ficaram numa pensão.

Houve gritos de Angola é… (qualquer coisa) durante a actuação do conjunto Manfred Mann (de que faz parte um comunista declarado, crê-se que chamado Hugg).
Fora do recinto, junto do rio e de uma capela, havia muitas tendas montadas e gente a dormir encostada a árvores ou muros e embrulhada em cobertores.

Houve grande confusão junto às portas de entrada.

Havia quatro bilheteiras em funcionamento permanente e muito trânsito.

Toda aquela multidão de famintos, sem recursos para adquirir géneros alimentícios indispensáveis, como se de uma praga de gafanhotos se tratasse, se lançou sobre as hortas próximas colhendo batatas e outros produtos hortícolas, causando assim, grandes contrariedades aos seus proprietários, muitos deles de débeis recursos económicos.

26-8-71››


Fontes:

Revista Sábado (Agosto de 2010)
http://visao.sapo.pt/actualidade/cultura/2016-08-25-Festival-Vilar-de-Mouros-seis-curiosidades
http://blitz.sapo.pt/principal/update/2017-04-09-Como-a-policia-politica-controlava-os-festivais-antes-do-25-de-Abril


LAC

quinta-feira, 15 de março de 2018

ABRILADA DE 1961 - O PRINCÍPIO DO FIM DO ESTADO NOVO?


O ano de 1961 têm vindo a ser considerado pelos historiadores o annus horribilis do regime de Salazar. Se em 1958 o "Terramoto Delgado" abalara as fundações da ditadura, a sequência de eventos ocorridos no ano de 1961 assinalam o início da sua derrocada. 1961 ficará na memória dos portugueses como o ano do assalto ao paquete Santa Maria (Janeiro), dos massacres da UPA no Norte de Angola (Março), da intentona de Botelho Moniz (Abril), do sequestro do avião TAP Casablanca-Lisboa (Novembro), da invasão de Goa pela União Indiana e do assalto ao quartel de Beja (Dezembro). Com estas acções destruiu-se o manto de invulnerabilidade do regime e surgem os primeiros indícios do que está para vir: uma resistência organizada no seio das forças armadas que culminará no 25 de Abril; a primeira machadada na integridade do império com a perda de Goa e as primeiras insurgências na África portuguesa, que culminarão na dissolução de um império colonial multissecular.


Jornal da época dá conta da "Operação Dulcineia" que envolveu o sequestro do paquete Santa Maria.


Oliveira Salazar, um soberanista puro, era instintivamente adverso a qualquer projecto supranacional susceptível de comprometer a sua independência política. A adesão como membro-fundador à NATO, em 1949, ainda trará amargas consequências ao regime mas não da forma que Salazar imagina. Uma geração de militares; entre os quais se incluem Humberto Delgado, Costa Gomes ou Botelho Moniz; será exposta ao pensamento liberal americano durante o trabalho desenvolvido no âmbito da aliança atlântica.

1961 é também o ano da eleição de John F. Kennedy como presidente dos Estados Unidos e marca um endurecimento da posição norte-americana em relação ao colonialismo português. O recrudescer de convulsões sociais em Angola leva o embaixador Charles Burke Elbrick a comunicar no início de Março que os americanos votarão contrariamente aos interesses de Portugal numa proposta no Conselho de Segurança da ONU relativa ao colonialismo. Propõe que o governo português se mostre favorável a uma solução de entendimento; que declarasse às Nações Unidas estar a desenvolver esforços no sentido de conceder uma autonomia progressiva às províncias africanas, para que num prazo realista estas pudessem decidir o seu destino através de um referendo. Esta decisão é comunicada igualmente ao chefe do governo como ao grupo de Botelho Moniz, dando a entender que os Estados Unidos estariam dispostos a apoiar o governo que promovesse as reformas pretendidas, quer este fosse chefiado por Salazar, quer por Botelho Moniz.


Almeida Fernandes (em cima) e Botelho Moniz (em baixo), figuras em destaque na Abrilada de 1961.


A 15 de Março dão-se as chacinas de fazendeiros portugueses e dos seus trabalhadores bailundos no Norte de Angola; a questão assume carácter de urgência. A intransigência de Salazar em alcançar um entendimento leva os militares a procurar outra solução. Os conjurados, cujas figuras de proa são Botelho Moniz (Ministro da Defesa), Almeida Fernandes (Ministro da Guerra) e Costa Gomes (Subsecretário de Estado), pretendem realizar um golpe palaciano que provoque a demissão do presidente do conselho e a inversão da política africana.

Após uma derradeira aproximação a Oliveira Salazar, na qual o tentam sem sucesso sensibilizar para a necessidade de ampla reforma, o grupo recorre ao presidente Américo Thomaz obtendo no entanto resultados idênticos. É neste momento que decidem avançar para um "pronunciamento militar" que conduzisse ao afastamento de ambos os governantes. A chefia do governo seria ocupada provisoriamente por Botelho Moniz e a presidência foi oferecida ao caído em desgraça Craveiro Lopes. Um avião transportaria o presidente do conselho deposto para a Suiça. 

Talvez devido à acção pouco presta e demasiado denunciada, o complot é descoberto por Kaúlza de Arriaga que o denuncia a Américo Thomaz e imediatamente põe em marcha um contra-golpe. Avisado de antemão que a reunião decisiva teria lugar no dia 13 de Abril, serve-se das suas próprias redes clientelares dentro do exército para neutralizar a conspiração. Pelas 15h é emitido na rádio um comunicado que anuncia as demissões dos envolvidos, remetendo a sua reunião à ilegalidade. É nesta fase que surgem as primeiras hesitações e recuos. Encontrando-se a assembleia em sedição está definitivamente afastado um golpe constitucional, restando apenas a opção da tomada do poder pela força. Este não era de todo o objectivo dos militares que de acordo com Albuquerque Freitas pretendiam apenas uma "ameaça fatal" e nunca um "acto de força". Não contando com apoio da totalidade das forças armadas e pesadas as consequências de um potencial choque sangrento com forças fiéis ao regime, a possibilidade da luta armada era posta de parte, para já.

O dia de 13 de Abril de 1961 terminaria com a aparição televisiva de Oliveira Salazar na qual profere a célebre declaração que estabeleceu o mote "andar rapidamente e em força" e assinalou o princípio da Guerra Colonial.





Bibliografia:
LÉONARD, Yves; História do Portugal Contemporâneo: De 1890 aos nossos dias; Objectiva; 2017.
RODRIGUES, Luís Nuno; Marechal Costa Gomes: No centro da tempestade; Esfera dos Livros; 2008.


LAC

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

A GRANDE EXPOSIÇÃO DO MUNDO PORTUGUÊS




Durante aproximadamente meio ano, entre 23 de Junho e 2 de Dezembro de 1940, a zona ribeirinha de Belém em Lisboa foi palco de uma exposição de cariz propagandístico no âmbito das culturas lusófonas e da sua História. Em retrospectiva, seria considerado o evento mais relevante da vida cultural do Estado Novo, beneficiando à época de uma enorme cobertura mediática internacional. Previamente em 1934, já se realizara no Palácio de Cristal do Porto a I Exposição Colonial, hoje interpretada como um ensaio para a Exposição do Mundo Português. Embora o grosso das acções tenham tido lugar em Lisboa, assistiu-se a uma verdadeira mobilização nacional para a celebração: realizaram-se cortejos, serviços religiosos, desfiles alegóricos, discursos e congressos um pouco por todo o país.


Concebida na tradição das grandes exposições, e na sequência da participação portuguesa nas que tiveram lugar em Paris (1937), Nova Iorque e São Francisco (1939), em Portugal esta só viria a encontrar paralelo muito mais tarde na Expo '98. O evento, à época na vanguarda da propaganda dos regimes autoritários, foi organizado pelo Secretariado da Propaganda Nacional e teve colaboração de diversos artistas modernistas. Os seus responsáveis máximos foram Augusto de Castro e o Ministro das Obras Públicas Duarte Pacheco, destacando-se também o arquitecto-chefe Cottinelli Telmo que concebeu grande parte dos espaços.


Assinalou simultaneamente as comemorações da Fundação da Nação Portuguesa (1140) e da Restauração da Independência (1640), assim como a consolidação do Estado Novo enquanto regime político. Com esta imponente exposição o Estado Novo pretendia associar-se aos grandes feitos da História de Portugal, não só conferindo uma noção de continuidade histórica mas formulando a sua estética de regime regenerador, que refunda a pátria em sintonia com os intemporais valores da nacionalidade. Em suma, a ideia de um passado mítico legitimador do presente. Perspectivando este evento, António Ferro já o clarificava em Abril de 1938:


"1140 explica 1640, tal como 1640 prepara 1940. São os três anos sagrados da nossa história, o ano do nascimento, o ano da Restauração e o ano que glorifica a ressurreição! Aquilo que iremos festejar não será tanto o Portugal de ontem, o de D. Afonso Henriques e de D. João IV, mas o Portugal de hoje, o de Carmona e de Salazar."


Coincidindo com o primeiro ano da Segunda Guerra Mundial a exposição pretendeu apresentar Lisboa como uma cidade-modelo, que contrastava com a Europa beligerante. Estima-se que a exposição tenha sido visitada por 3 milhões de pessoas, alguns deles refugiados de guerra, em trânsito para o Novo Mundo. Era este o "oásis de paz" que impressionou os que cá passaram, como o piloto e escritor francês Antoine de Saint-Exupéry:


"Lisboa surgiu-me como uma espécie de paraíso claro e triste. Lisboa, que edificou a mais deslumbrante exposição que já houve no mundo, sorri com um sorriso pálido. Errei melancolicamente por ela. É de um bom gosto extremo, tudo parece tocar a perfeição! Portugal aferra-se à ilusão da sua felicidade, fala com uma confiança desesperada. À falta de exército, à falta de canhões, o país ergueu contra o ferro invasor todas as suas sentinelas de pedra: os exploradores, os conquistadores, os poetas."

O único país estrangeiro convidado a participar foi o Brasil de Getúlio Vargas, que sob o signo do lusotropicalismo simbolizava o "génio colonizador português". Ao regime brasileiro foi atribuído um pavilhão onde apresentou a sua visão vanguardista para o país. A secção de etnografia colonial foi povoada pelas diversas nações africanas que constituíam então o império colonial português, representadas em várias instalações. 

O espaço das Aldeias Portuguesas, com as quais os visitantes lusos se identificavam intuitivamente, afirmava o princípio da ruralidade a implementar no Portugal de Salazar. Esta é mais uma manifestação da política de espírito promovida por António Ferro: a ideia de um Portugal rural e tradicional mas simultaneamente renovado e modernizado pelo Estado Novo.

O Ex-Libris da exposição foi no entanto a Nau de Portugal ancorada no Tejo, uma reconstituição de um galeão da Carreira da Índia dos séculos XVII e XVIII. Fora construída obedecendo a critérios de autenticidade histórica, recorrendo apenas a madeiras portuguesas e brasileiras, nos estaleiros do Mestre Manuel Maria Mónica,  na Gafanha da Nazaré. No entanto, pouco depois de largar ferro da Doca do Bom Sucesso, a nau adernaria, acabando mesmo por tombar lateralmente.

Tendo a exposição sido maioritariamente composta por arte efémera, para comprovar a sua existência restam hoje a Praça do Império, o Museu de Arte Popular e o Padrão dos Descobrimentos (reconstruído por ocasião das Comemorações Henriquinas de 1960 à imagem do modelo original em gesso).




LAC