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segunda-feira, 23 de janeiro de 2023

O ROMANTISMO PORTUGUÊS E A CULTURA POPULAR



O movimento romântico surge em Portugal num contexto histórico e político particular: o do liberalismo e das oposições entre liberais e absolutistas. Não obstante algumas manifestações protoromânticas estarem já presentes na literatura portuguesa anteriormente, em Portugal o Romantismo como movimento emerge em pleno a partir do segundo quartel do século XIX.


Passos Manuel, Almeida Garrett, Alexandre Herculano e José Estevão de Magalhães


No panorama internacional, aparece intimamente relacionado com a construção de uma Europa de Estados-Nação, assumindo-se como veículo dos sentimentos nacionais e do ideário nacionalista. Não raras vezes, os românticos aparecem associados a eventos históricos centrais na formação das nações europeias, como a Guerra da Independência da Grécia (1821-1829), a Unificação de Itália (1870) ou a Unificação da Alemanha (1871), que ocorrem neste período e em que participam.


 Johann von Goethe, uma das figuras cimeiras do Romantismo europeu


O historicismo ou a centralidade da História, que no Romantismo português se materializa sobretudo no revivalismo medieval ou na ressurreição de estilos arquitetónicos como o manuelino, é uma das suas caraterísticas definidoras. Através deste tipo de intervenção os românticos pretendiam evocar um passado glorioso e criar um sentimento nacional, e faziam-no com recurso a momentos-chave da formação das identidades nacionais, no caso português a fundação da nacionalidade na Idade Média e a gesta dos Descobrimentos.

O discurso nacionalista prezava, citando as palavras da investigadora Carla Ribeiro, “a unidade, a originalidade e a diferença”; demonstrava interesse pelas manifestações que suscetíveis de comprovar o génio nacional, investidas de “um carácter único, singular e simultaneamente, comprovando a antiguidade da Nação”. Abraçado também pelos românticos, este desiderato de alcançar uma pureza ancestral encontraria eco nas massas populares e campesinas, dando origem a um culto do demótico, de elogio do povo e das suas coisas.

A visão de "Nação" dos românticos é particular: destacam o Portugal rural como o verdadeiro Portugal. Rejeitam o cosmopolitismo dos grandes centros urbanos, que dizem estar contaminado com o sentimento anglófilo ou francófilo. Para eles as raízes da nacionalidade encontram-se nas gentes campesinas, que viam como um povo eterno e imutável. Reagem a uma crise de identidade nascida de um período de aceleração histórica: apegam-se à simplicidade da vida rural que contrasta com o frenesim urbano, decorrente da industrialização.




No ambiente cultural português, certas figuras tornaram-se indissociáveis do Romantismo e pode-se mesmo dizer que o encarnaram. A este nível é inevitável destacar Almeida Garrett e Alexandre Herculano, intelectuais multifacetados que integraram a denominada primeira geração romântica. A Almeida Garrett é mesmo atribuída a introdução do movimento nos meios literários portugueses, apontando-se para os seus poemas Camões (1825) e Dona Branca (1826) como escritos pioneiros. Ambos desempenham um papel ativo nas Guerras Liberais (1832-1834), estando presentes do lado liberal no Desembarque do Mindelo e no Cerco do Porto, atitude demonstrativa da participação cívica dos românticos.

Terá sido Almeida Garrett o primeiro a fazer um levantamento do património popular português que chega até nós em obras como Romanceiro e Cancioneiro Geral de 1843. Nas palavras do autor era pretendido dar a conhecer a “outra literatura que era a verdadeira nacional, a popular, a vencida, a tiranizada por esses invasores gregos e romanos”. Na introdução ao segundo volume do Romanceiro, Garrett asseverava a necessidade de se “estudar as nossas primitivas fontes poéticas, os romances em verso e as lendas em prosa; as fábulas e crenças velhas, as costumeiras e as superstições antigas; (…) o tom e o espírito verdadeiro português esse é forçoso estudá-lo no grande livro nacional, que é o povo e a suas tradições”.

Em 1851 era a vez de Alexandre Herculano publicar os dois volumes das suas Lendas e Narrativas, uma coletânea de literatura popular na senda das recolhas de folclore dos irmãos Grimm na atual Alemanha ou dos romances de Walter Scott no Reino Unido. No prefácio, Herculano expressava a vontade de “introduzir na literatura nacional um género amplamente cultivado, em todos os países da Europa”, esperando que este seu gesto viesse a constituir “a sementinha donde proveio a floresta”. O levantamento levado a cabo, composto essencialmente por lendas populares e pequenos contos de tradição oral, constituiu um marco assinalável na história literária portuguesa.

Com Garrett e Herculano são consumados os primeiros impulsos de uma prática de recolha da literatura popular e folclore, que sobreviviam apenas através da repetição oral, enfrentando as fragilidades de preservação inerentes a este meio de transmissão. Com maior ou menor intencionalidade, eram criadas as primeiras metodologias de salvaguarda, predecessoras da etnografia, de conversão destas manifestações para um registo escrito com maior capacidade de resistir ao passar do tempo.

Também na música o movimento romântico deixou o seu lastro. Mais associado às óperas de índole nacionalista (com destaque para Verdi na Itália e Wagner na Alemanha), é neste período que se manifesta uma etnomusicologia incipiente, com as primeiras recolhas de música popular. Neste contexto nascerá um fenómeno de intercâmbio entre música erudita e popular. Na esperança de quebrar com as influências estrangeiras predominantes, a música erudita urbana vai colher influências ao cancioneiro rural de raiz tradicional. A partir destas recolhas, compositores eruditos vão levar a cabo uma harmonização da música popular para piano, com vista à criação de uma “composição nacional”. Neste exercício notabilizam-se Alfredo Keil (1850-1907) e Vianna da Motta (1868-1948), entre outros.


“Nenhuma coisa pode ser nacional se não é popular.” Almeida Garrett in Romanceiro e Cancioneiro Geral (1843)

Com esta afirmação, que nos lega na nota introdutória para o seu Romanceiro e Cancioneiro Geral, Almeida Garrett remete-nos para as aceções românticas de “Nação” e de “Povo”. Para os românticos as verdadeiras raízes da nacionalidade seriam encontradas não nas cidades, em acelerada mudança social e tecnológica, mas nos campos, onde vivia o povo que “escudado do progresso e das influências estrangeiras, soube conservar as raízes da Nação, dos valores imemoriais que vivem na tradição, apresentando-os na sua forma mais pura” (RIBEIRO; 2012).

As recolhas de cultura popular levadas a cabo por autores românticos como Garrett e Herculano simbolizam uma demanda pela pureza e pela ancestralidade, com a missão de encontrar a nacionalidade que, a seu ver, seria a “mais verdadeira”. No caso português, a necessidade desta demanda é acentuada por uma conjuntura histórica e política bem localizada: a estruturação de uma sociedade liberal no pós-1820, que exigia, como afirma Augusto Santos Silva “criar uma nova civilização, fazendo vingar novas instâncias e padrões de socialização (…), novos quadros de valores e normas, novas práticas materiais e simbólicas.”

Num contexto ideológico mais amplo, esta valorização do demótico pelos românticos na sua faceta liberal está relacionada com um novo contrato social que seria necessário implementar. Com o fim do absolutismo régio em 1820 a soberania era transferida do direito divino dos monarcas para o povo e os seus representantes. Neste conceito do povo como fonte do poder político estão as raízes das instituições democráticas.


Luís Alves Carpinteiro | Cabo Não

sexta-feira, 6 de dezembro de 2019

COMO BISMARCK UNIFICOU A ALEMANHA



Personificação da Germânia (1848, atribuído a Philipp Veit)

No final do século XVIII a Europa Central estava fragmentada em cerca de 300 estados independentes de dimensão e sistemas políticos variáveis entre reinos, ducados, principados e cidades-livres. Estes estados estavam vagamente unidos debaixo da anacrónica denominação de Sacro Império Romano, originária da era de Carlos Magno.


Durante a segunda metade do século XVIII a relação entre estados germânicos foi dominado pela rivalidade entre o Reino da Áustria dos Habsburgo e o Reino da Prússia dos Hohenzollerns. Tradicionalmente, a Áustria era o estado dominante e os arquiduques Habsburgo assumiam o título de Imperadores Romano-Germânicos. O balanço de poderes entre os dois estados sofreu alterações a partir de 1740 com o aumento do poderio militar e aquisição de novos territórios pela Prússia.

No contexto das Guerras Napoleónicas o Sacro Império Romano é dissolvido, tornando a Europa Central um dos principais pontos de discussão no Congresso de Viena (1814-15). A solução encontrada foi a formação da Confederação Germânica, composta por 39 estados. A Confederação teve sucesso enquanto unidade militar, com cada um dos estados a comprometer-se a defender os outros em caso de ataque externo, no entanto falhou em termos económicos e como órgão de unidade nacional.

A primeira forma de união económica foi gizada em 1834 com o estabelecimento a aliança aduaneira Zollverein. O debate sobre a unificação da Alemanha era à época um confronto entre duas ideias: uma "Pequena Alemanha" que excluía a Áustria e uma "Grande Alemanha" que incluía a Áustria. Os apoiantes da "Pequena Alemanha" alegavam que a composição étnica da Áustria, com cerca de 15 minorias distintas, dificultaria a gestão do território.

O primeiro esforço sério de unificar a Alemanha ocorreu durante o ano de 1848 quando a Revolução de Fevereiro em Paris acirrou os ímpetos nacionalistas germânicos. No dia 18 de Maio a primeira Assembleia Nacional eleita pelo povo alemão reunia-se em Frankfurt. Todavia, a experiência foi gorada pela debilidade do poder executivo e terminou no Outono de 1849.


A CHEGADA DO CHANCELER DE FERRO


"Cedo me verei compelido a assumir a condução da governação prussiana... Tão cedo o exército seja devolvido a tais condições que imponham respeito, aproveitarei o primeiro pretexto válido para declarar guerra à Áustria, dissolver a Confederação Germânica, subjugar os estados menores e proceder à unificação da Alemanha sob liderança da Prússia" Otto von Bismarck, 1862.

Otto von Bismarck. Fotografias coloridas digitalmente por www.jecinci.com

A suprema motivação do Príncipe de Bismarck, como a de qualquer junker, era preservar a antiga Prússia real, militarista e autocrática. Todavia, tinha noção que a vaga de nacionalismo liberal que criava novos Estados-Nação por toda a Europa podia ser canalizada mas nunca parada.

A Alemanha de Bismarck teria a aparência de uma união nacional mas serviria o propósito de assertar o domínio prussiano entre os povos germânicos. Bismarck esperava que por esta altura o ímpeto unificador dos nacionalistas alemães fosse tão grande que nem reparassem no facto de estarem perante uma tomada de poder prussiana.

A unificação alemã foi imposta por Bismarck "de cima para baixo" através de um exímio calculismo político que envolveu uso de propaganda que apresentava a Prússia como baluarte do pangermanismo em direta oposição ao liberalismo anglófilo dos estados ocidentais.  

Em 1864, uma primeira guerra de unificação é combatida quando uma coligação entre a Prússia e a Áustria sai em defesa do ducado da Holsácia, em perigo de anexação pela Dinamarca, aliada da Grã-Bretanha. Serve esta guerra o propósito de separar as águas entre germânicos nacionalistas e anglófilos que doravante apoiarão a causa de Bismarck.

Em 1866, era a vez de prussianos e austríacos medirem forças e resolviam para sempre a questão da "Pequena Alemanha" versus "Grande Alemanha". O confronto durou poucas semanas e resultou na anexação pela Prússia de estados que tinham alinhado com a Áustria, como Hannover e Nassau. A Prússia vai permitir a manutenção da independência de alguns dos maiores estados aliados da Áustria, nomeadamente Baden e a Baviera.

Em 1867, Bismarck funda a Confederação Germânica do Norte, uma união dos estados do norte sob a hegemonia da Prússia. Vários estados vão aderir a esta entidade que servirá de molde para o futuro Império Alemão. A terceira e última fase do processo de unificação decorreu da Guerra Franco-Prussiana (1870-71), engendrada por Bismarck como forma de coagir os estados ocidentais mais expostos à arremetida francesa a aderir à Confederação Germânica do Norte.


Estátua de Bismarck em Hamburgo

A vitória prussiana seria total com o Segundo Império francês a ser derrotado perante um exército mais numeroso e tecnologicamente avançado. A campanha vitoriosa culminaria com a queda de Paris a 28 de janeiro de 1871 e com a anexação prussiana das províncias francesas de Alsácia e Lorena, formalizada pelo Tratado de Frankfurt a 10 de maio de 1871. O irredentismo da Alsácia-Lorena permanecerá uma pedra no sapato das relações franco-germânicas e estará na origem de confrontos entre os dois países na Primeira e Segunda Guerra Mundial.

No rescaldo da derrota francesa, o Império Alemão é proclamado no Salão dos Espelhos do Palácio de Versalhes, convertendo a Confederação Germânica num Império e o rei da Prússia, Guilherme I, no seu imperador. A Alemanha unificada aglomerará um total de 26 estados, deixando de parte a Áustria. Ao longo das décadas seguintes a Alemanha tornou-se um gigante industrial, tecnológico e científico, amealhando mais prémios Nobel do que qualquer outra nação. No dealbar do século XX já era a maior economia da Europa, ultrapassando a Grã-Bretanha, e a segunda maior do mundo, ficando apenas atrás dos Estados Unidos.



LAC

sábado, 12 de janeiro de 2019

ÉMILE ZOLA E O CASO DREYFUS



Neste dia 13 de Janeiro, em 1898, Émile Zola publica no periódico parisiense L’Aurore a sua carta aberta ao presidente francês “J’Accuse…!”, envolvendo-se assim na controvérsia em torno da condenação por espionagem do capitão Alfred Dreyfus.










Alfred Dreyfus foi um oficial de artilharia do exército francês, de origem judaica. Nascido no seio de uma família com fortuna no sector têxtil, era natural da província da Alsácia, anexada pela Alemanha na sequência da humilhante derrota francesa na Guerra Franco-Prussiana de 1870-1871. 



Quando em 1894 uma empregada de limpeza infiltrada pelos serviços secretos franceses na Embaixada alemã se depara com um documento suspeito no lixo do adido militar, começa a caça ao espião dentro das forças armadas. O documento, que ficará para a História pelo nome bordereau, continha informações classificadas sobre uma super-arma em desenvolvimento, uma peça de artilharia de alto calibre. 



A busca foi restringida aos oficiais de artilharia que tinham acesso ao projecto, entre os quais o impopular Capitão Dreyfus, visto com desconfiança entre os militares devido à sua ascendência judaica e alsaciana. Apenas com base na comparação de caligrafias e numa análise grafológica, a investigação estabeleceu Dreyfus como “o autor provável” do bordereau, apesar das reservas demonstradas por alguns dos envolvidos. 



O frenesim mediático que acompanhou o caso tornou a imparcialidade impossível. Um tribunal militar reuniu-se à porta fechada com o objectivo de proceder a um julgamento célere, longe das opiniões inflamadas. A pouca consubstanciação ou total inexistência de provas foi um problema para a acusação que forjou um dossier secreto cuja peça central era uma elusiva carta do adido alemão em que se mencionava “ce canaille de D…” (esse patife do D). A acusação não teve dúvidas: o "D" era de Dreyfus!



Após ser submetido a uma ultrajante cerimónia militar, em que debaixo dos urros da multidão lhe são arrancados os galões de oficial, Dreyfus é degredado para a colónia penal da Ilha do Diabo, na costa da Guiana Francesa. A causa desesperada de Dreyfus vai ter um paladino inabalável no seu irmão mais velho, Mathieu Dreyfus, que vai empenhar todos os meios ao seu dispor para ilibar o irmão.

Alfred Dreyfus na Ilha do Diabo

A brecha no caso vai provir de um herói improvável, o novo chefe dos serviços secretos franceses Coronel Georges Picquart. No decorrer das operações de vigilância à Embaixada alemã, Picquart vai ter acesso a um telegrama não enviado entre o adido alemão e um oficial do exército francês, o Major Walsin-Esterházy. Ao contrapor a escrita de Esterházy com a do bordereau, o Coronel fica convicto da inocência de Dreyfus. Quando transmite a descoberta fica chocado com a reacção evasiva dos seus superiores que o vão afastar para a Tunísia num esforço para encobrir a verdade.

Em Novembro de 1897 Mathieu Dreyfus publica uma reprodução do bordereau no jornal Le Figaro, tornando o escândalo público. Isto vai permitir a identificação da assinatura de Esterházy no documento pelo seu banqueiro. A causa dos Dreyfusards (apoiantes de Dreyfus) ganha ímpeto com a adesão de grandes vultos do mundo intelectual como Émile Zola, Octave Mirbeau ou o futuro presidente da França, Georges Clemenceau, cujos escritos e palavras de ordem vão contribuir decisivamente para a reabertura do caso. 

Perante a crescente pressão dos Dreyfusards o Major Esterházy é julgado, mais uma vez em tribunal militar e à porta fechada. Previsivelmente, Esterházy é absolvido pelos militares, renitentes em admitir os seus próprios logros. As tensões escalam entre os grupos rivais que se amotinam e confrontam nas ruas. 

É este ambiente inflamável que Zola vai incendiar com “J’Accuse…!” denunciando temerariamente o complot contra Dreyfus, explicitando o nome de todos os envolvidos. O ataque cirúrgico do romancista tinha como objectivo expô-lo como alvo dos tribunais, forçando uma revisão do caso. A atenção internacional que o artigo recebe torna o julgamento de Zola inevitável, resultando na sua condenação à pena máxima de um ano de prisão, à qual escapa através de fuga para Inglaterra. 

Émile Zola no seu julgamento

O artigo de Émile Zola é o ponto que assinala a viragem do caso e o início da reposição da verdade. O retorno do escritor do exílio só lhe é permitido em 1899, ainda a tempo de assistir à repetição do julgamento de Dreyfus, regressado da Ilha do Diabo para o efeito. Entretanto, a inocência de Dreyfus tornava-se por demais evidente: uma vez a salvo em solo inglês o Major Esterházy confessara a autoria do bordereau; o Inspetor Henry, que conduzira o caso desde o início, suicidara-se na prisão, mas não sem antes confessar ter forjado provas para incriminar Deyfrus.


Naquele que ficou conhecido como o julgamento de Rennes, o tribunal manteve o veredicto de culpado de Dreyfus que foi todavia amnistiado e libertado. Apenas em 1906 a sentença será finalmente revertida. Infelizmente, Zola já não viverá para ver concretizada a justiça pela qual lutou; morre em 1902 devido à inalação de uma quantidade letal de monóxido de carbono proveniente de uma chaminé defeituosa. Muitos estudiosos não descartaram a possibilidade de ter sido assassinado por inimigos políticos, no entanto, nada foi provado.


LAC

quarta-feira, 19 de dezembro de 2018

LUDISMO, NEO-LUDISMO E O UNABOMBER


Neste artigo abordamos as revoltas luditas do primeiro quartel do século XIX, ocorridas em solo britânico. Numa segunda fase discutiremos a sua influência no terrorista anarco-primitivista Ted Kaczynski (n. 1942), mais conhecido pelo acrónimo Unabomber.


Conceitos a explorar:


Neo-ludismo – Conjunto de organizações não-afiliadas que se assumem como herdeiras do Ludismo inglês do século XIX e questionam a sociedade industrial e os seus efeitos no ser humano.

Anarco-primitivismo – Filosofia que critica o processo civilizacional como raiz dos males da humanidade e advoga o retorno a um estado selvagem pré-industrial.

Eco-terrorismo – Ato de violência ou destruição dirigida a pessoas ou propriedade motivado por reivindicações de teor ecológico ou ambientalista.

Green Anarchism – Vertente do anarquismo com particular ênfase nas questões ambientais e na preservação da natureza.


O obscuro personagem Ned Ludd, que empresta o nome ao movimento







































Ludismo Inglês (1811-1816)



As origens:


As origens do Ludismo remetem ao áspero clima económico das Guerras Napoleónicas. Os confrontos entre ingleses e franceses geraram uma subida de preços que atingiu violentamente as classes mais vulneráveis que se viram a mãos com situações de escassez e pobreza endémica. Ao contrário do que vulgarmente se pensa, o que levou os Luditas a sublevarem-se contra os seus patrões não foi a aversão às máquinas ou o medo do progresso tecnológico, mas o declínio progressivo das suas condições laborais. Numa conjuntura económica difícil, a introdução de maquinaria no meio fabril significou o despedimento em massa de trabalhadores especializados e a sua substituição por homólogos menos qualificados que auferiam salários mais baixos. Na ausência de organizações sindicais, os Luditas recorreram a acções como a destruição de máquinas para pressionar o patronato e reivindicar melhores condições de trabalho.

O movimento Ludita, desde a sua emergência, deixou em estado de alerta o Governo Britânico que já se encontrava envolvido numa guerra contra Napoleão e agora acrescentava-lhe a agitação social em solo nacional. A solução inicial encontrada pelo Governo Britânico foi a mobilização de um exército para fazer face aos desordeiros e pôr fim à destruição das máquinas industriais, fundamentais para múltiplos sectores industriais dos quais dependia fortemente a economia britânica. A problemática Ludita tornou-se tão complexa e difícil de erradicar que o contingente de soldados colocados em solo britânico superaram mesmo os que os que combatiam a Guerra Peninsular contra Napoleão. A utilização do exército como instrumento para erradicar o movimento revelou-se de pouca eficácia, visto que os Luditas podiam eventualmente reorganizar-se e voltar a atacar fábricas e os seus respectivos donos, o que forçou o governo a adoptar uma participação mais activa na questão.


A resposta legislativa e o fim do movimento:


O Governo Britânico, deparando-se com uma situação insustentável em pleno solo inglês e constatando a ineficácia das acções militares, decide recorrer ao meio legislativo para desmantelar o movimento. A solução será alcançada através do Parlamento: o governo redige e promulga o “Frame Breaking Act”, passando a destruição de máquinas a ser punida com pena de morte. Eventualmente, saturado da situação, o Governo Britânico organizou um julgamento de grande escala para suprimir a insurreição, que se realizou em York no dia 16 de Janeiro de 1813. O governo acusou um total de sessenta homens. Embora parte dos acusados possuíssem de facto ligações com o movimento, estas nunca foram devidamente esclarecidas, procedendo-se a um julgamento sumário em que muitos foram condenados com poucas ou nenhumas provas.

O julgamento de York precipitou o fim do movimento, levando os restantes membros a reintegrarem-se novamente na sociedade britânica e a cessarem os seus actos com medo de sofrerem o mesmo destino dos seus companheiros capturados.


O Unabomber



Theodore Kaczynski nasce em 1942 no seio de uma família de emigrantes polacos de classe média em Chicago, Illinois. Cedo demonstra ser uma criança prodígio, especialmente dotada para as matemáticas. Perplexos com o desenvolvimento precoce de Kaczynski os professores decidem submetê-lo a um teste de QI que revela um impressionante resultado de 167. É enquadrado numa turma mais avançada com estudantes mais velhos, o que lhe vai permitir concluir o ensino secundário com apenas 15 anos de idade e ingressar na Universidade de Harvard no ano seguinte.

Enquanto estudante de Harvard de 17 anos é submetido a uma “experiência propositadamente psicologicamente brutalizante” conduzida pelo psicólogo Henry Murray, que muitos sugerem estar envolvido no programa de controlo de mente MKUltra. O filósofo Jonathan D. Moreno relaciona este evento traumático com uma distorção na personalidade de Ted que agiu como um rastilho na sua posterior radicalização.

Em 1962, abandona Harvard com o seu bacharelato em matemática para prosseguir uma carreira académica na Universidade do Michigan. Em 1967 defende a sua tese de doutoramento “Boundary Functions” que lhe vale o prémio Sumner B. Myers para melhor tese matemática do Michigan. Com somente 25 anos, torna-se o mais jovem professor assistente da história da Universidade de Berkeley, onde ensinará geometria e cálculo.

Em 1969, de forma “inesperada” e “súbita” demite-se do seu cargo de professor. Regressa a casa dos pais onde durante dois anos concebe e prepara a sua aventura.

Cabana habitada por Kaczynski entre 1971 e 1996; Pistola e bomba artesanal 

Em 1971, parte para as densas florestas do Montana onde viverá como um ermita numa cabana sem acesso a saneamento nem corrente eléctrica. Aprende técnicas que lhe permitem sobreviver, como identificação de rastos de animais e de plantas comestíveis ou técnicas primitivas de agricultura.

Testemunhar a destruição do meio natural que habita em prol de empreendimentos imobiliários e industriais, suscita em Ted um sentimento de raiva que o leva a conduzir pequenos actos de sabotagem. Estuda sociologia e filosofia política: lê entusiasticamente a obra do anarquista francês Jacques Ellul e assimila o seu pensamento.

Cartaz oferece recompensa; Capa da Revista Time após captura

Ao longo das duas décadas que se seguiram Ted aterrorizou os Estados Unidos, com o envio de bombas artesanais de progressiva complexidade. Um total de dezasseis ataques à bomba são-lhe atribuídos entre 1978 e 1995, deixando um rasto de destruição que causou a morte a três pessoas e feriu dezenas de outras. Os seus alvos foram cientistas, académicos, industriais e outros que considerava responsáveis por um progresso tecnológico nefasto para o futuro da humanidade e do planeta. Daqui em diante será referido pela polícia e depois pela imprensa pelo infame acrónimo Unabomber (University and Airline Bomber).

Em 1995 o Unabomber surpreendeu tudo e todos ao enviar o seu manifesto de 35 mil palavras aos principais periódicos americanos, prometendo que caso este fosse integralmente publicado desistiria do terrorismo. Esta oportunidade foi vista como uma brecha pelos investigadores que confrontados com um vácuo de pistas esperavam que a publicação pudesse levar à identificação do criminoso.

No dia 19 de Setembro de 1995 o seu ensaio é publicado pelo Washington Post e pelo New York Times possibilitando o reconhecimento do estilo de escrita pelo próprio irmão do bombista, David Kaczynski. A 3 de abril de 1996 o Unabomber é capturado na sua cabana de onde são retiradas 40 mil páginas de diários relatando os crimes e ainda um dispositivo explosivo pronto para envio. Quase vinte anos sobre o primeiro atentado era concluída desta forma a caça ao homem que permanece até hoje como a mais duradoura e dispendiosa da história do FBI.



LAC


segunda-feira, 8 de outubro de 2018

EGIPTOMANIA: A OBSESSÃO DO OCIDENTE PELO ANTIGO EGIPTO


1. O egiptólogo Howard Carter examina o sarcófago de Tuthankamon (Harry Burton, 1923)

O fascínio dos europeus pelo Egipto é uma história de amor com mais de um milénio. Foi partilhado pelo mundo greco-romano e pelas culturas cristãs que lhe sucederam.

Entre 125 e 134 o imperador romano Adriano mandou construir um jardim à moda egípcia na sua Villa, em memória do seu amante Antinoüs que morrera afogado no rio Nilo. Conhecem-se templos na Grécia dedicados à deusa Ísis desde IV a. C. As representações dessa mesma divindade segurando Hórus seriam um dos protótipos utilizados pelos primeiros cristãos para desenvolver a iconografia da Virgem Maria e do Menino (fig. 2).

2. Ísis e Hórus, Período Ptolomaico (Museum Metropolitan of Art)

A inacessibilidade do Egipto aos europeus a partir da chegada de forças islâmicas belicosas à região em 641, contribuiu para uma concepção mítica da civilização egípcia, criando no imaginário popular um lugar "fora da história". Apesar de praticamente nenhum europeu ter visitado o Egipto durante este período, os artefactos que chegavam à Europa eram testemunho de uma terra estranha e exótica que suscitava paixões e relatos lendários.

O contacto dos europeus com múmias egípcias pode ser traçado até ao século XIII. Existem registos da pulverização das mesmas e do seu consumo como remédio, devido à crença de que trariam benefícios medicinais. Outros propósitos mais utilitários foram o de fertilizante, pigmento ou no fabrico do papel.

3. Vendedor de múmias nas ruas do Egipto (c. 1875)

A redescoberta dos autores clássicos durante a Renascença suscitou um fascínio pelo esoterismo egípcio e em particular pelos textos teológicos de Hermes Trismegisto, que seria mais tarde herdado por sociedades secretas como o Rosacrucianismo ou a Maçonaria.

Este magnetismo espiritual do Antigo Egipto seduziu as elites europeias que adornaram os seus jardins com esfinges e obeliscos. Rafael e Bernini conceberam túmulos piramidais para a nobreza romana, como o mausoléu dos Chigi integrado na Basílica de Santa Maria del Popolo.

Mas foi a invasão do Egipto por Napoleão (1798-1801), bem como a investigação científica que a acompanhou, que despertou a era dourada do interesse ocidental pela cultura egípcia. A gigantesca expedição militar foi integrada por estudiosos, cientistas e artistas que produziram a primeira descrição não-mítica da terra dos faraós, compilada na série de publicações Description de l'Égypte (1809-1829).

A febre só seria intensificada com o anúncio em 1822 de que Jean-François Champollion teria decifrado a Pedra de Roseta, possibilitando deste modo a tradução de hieróglifos e abrindo por fim o livro fechado da história egípcia à curiosidade dos ocidentais.

4. "Bonaparte devant le sphynx" do orientalista francês Jean-Léon Jérôme (1867-1868)  

A Egiptomania do século XIX foi simultaneamente palco de rituais bizarros como as "Mummy Unwrapping Parties", nas quais como o nome sugere, se procedia ao desfazer de múmias perante uma audiência. As múmias e outros artefactos tornaram-se souvenirs cobiçados na alta sociedade europeia, propulsionando um comércio mórbido em bancas de rua (fig. 2).

Esta alta procura gerou um contrabando proveitoso que tornou a violação de túmulos uma prática habitual. Os vendedores desenvolveram formas engenhosas de contrafacção, passando cadáveres de criminosos executados e mendigos por múmias antigas através de um processo que envolvia o enterro dos corpos em areia, a exposição solar e embalsamento em asfalto.

No início dos anos 20, o mundo parou quando o egiptólogo britânico Howard Carter abriu o túmulo de Tutankhamon no Vale dos Reis (fig. 1), que permanecera perdido durante 3 mil anos. Esta descoberta moldou profundamente o imaginário moderno do Antigo Egipto e estimulou manifestações tão díspares como a influência no movimento Art Déco ou no orientalismo do filme de terror "A Múmia" (1932) de Karl Freund.


5. Boris Karloff e Zita Johann em "A Múmia" (1932)


LAC


domingo, 13 de maio de 2018

DUAS HISTÓRIAS DO IMPÉRIO - MOUZINHO E GUNGUNHANA


Baixo-relevo representando a captura de Ngungunhane (Maputo, Moçambique).

Mouzinho de Albuquerque (1855-1902)

Joaquim Mouzinho de Albuquerque nasce no dia 11 de Novembro de 1855 na Quinta da Várzea, Batalha. Ingressa cedo no Colégio Militar de onde sairá em 1878 com a patente de alferes. No ano seguinte matricula-se na Universidade de Coimbra e casa-se com D. Maria Gaivão. É em 1886 que já como tenente partirá para a Índia onde vai realizar a sua primeira experiência na administração colonial. Após uma temporada a servir funções na fiscalização do Caminho-de-ferro de Mormugão é nomeado secretário-geral do governo do Estado da Índia. Em 1890 é promovido a capitão e transferido para Moçambique onde desempenha o cargo de governador do distrito de Lourenço Marques até 1892, altura em que retorna à metrópole. Dois anos depois receberá a incumbência de subjugar os régulos revoltosos do sul de Moçambique e é neste contexto que em 1895 captura o chefe vátua Gungunhana em Chaimite no dia 28 de Dezembro de 1895. O prestígio granjeado pelo êxito da campanha vai-lhe valer a nomeação para governador-geral de Moçambique e a investidura como comissário régio. Em 1897 comandará ainda campanhas de ocupação territorial em Naguema, Mocutumudo e Macontene, antes de partir para a metrópole com o intuito de obter um empréstimo que lhe permitisse proceder a reformas e ao desenvolvimento económico da colónia. Ao pisar Lisboa o “Herói de Chaimite” é recebido por uma população em apoteose. Enquanto tarda o empréstimo viaja pela Alemanha, França e Inglaterra, ao que depois retorna a Moçambique sem alcançar o seu objectivo. Quando por fim obtêm as verbas requeridas recebe também a notícia da cessação das suas funções como comissário régio o que o leva imediatamente a apresentar a sua demissão da administração colonial. Assim que esta é aceite pelo Presidente do Conselho José Luciano de Castro, volta mais uma vez a Lisboa. Perto do fim da vida desempenhará funções que o aproximarão da família real como ajudante de campo efectivo do Rei D. Carlos, oficial-mor da casa real e preceptor do príncipe herdeiro Luís Filipe. É por esta altura que é montada uma campanha contra a sua pessoa, correndo rumores do seu envolvimento intimo com a Rainha Dona Amélia. Mouzinho de Albuquerque, homem de formação militar e feitio rígido, nunca se conformaria ao clima de intrigas da corte que o angustiou profundamente. No dia 8 de Janeiro de 1902 tira a própria vida quando seguia a bordo de uma charrete “coupé” na Estrada das Laranjeiras. Foi sepultado no Cemitério dos Prazeres.

Ngungunhane e as suas sete esposas (no Forte de Monsanto, Lisboa, 1896)

Ngungunhane (c. 1850-1906)

Mudungazi “Ngungunhane” (Leão de Gaza) ou Reinaldo Frederico Gungunhana, como ficou conhecido entre os portugueses, nasce por volta de 1850 no Império de Gaza, Moçambique, supõe-se que nas margens do rio Limpopo. Foi chefe dos vátuas (nguni), um ramo dos zulus, que durante o reinado do seu avô Manicusse conquistara todo o vasto território entre o rio Incomáti e a margem esquerda do Zambeze e do Oceano Índico até ao curso superior do rio Save. O seu pai Muzila travara uma guerra sucessória contra o irmão Maueva que vencera com o auxílio dos portugueses. Gungunhana sobe ao trono na conjuntura da Conferência de Berlim (1884-1885) e o seu território é cobiçado por diversas potências europeias. É neste contexto que assina um tratado de amizade e vassalagem com os portugueses em 1885. Em 1894, a tribo dos tsongas sublevam-se contra a autoridade colonial portuguesa e colocam-se debaixo da protecção do régulo que se recusa a entregá-los. Esta recusa leva o rei a enviar o seu comissário António Enes para vergar a resistência e submeter os revoltosos à autoridade portuguesa, saldando-se os confrontos numa derrota sangrenta dos guerreiros de Gungunhana. Cercado, o imperador recolhe-se para a aldeia sagrada de Chaimite, onde será capturado e aprisionado pelos homens de Mouzinho de Albuquerque. Junto com um séquito e alguns familiares, serão transportados para Lisboa onde serão enjaulados e exibidos em cortejo perante uma multidão. Por fim serão transportados para o exílio na Ilha Terceira, Açores, onde Gungunhana e a sua família viveram em cativeiro como uma curiosidade local, até a sua morte em 1906. No dia 15 de Junho de 1985, por ocasião das comemorações do primeiro decénio da independência de Moçambique, Gungunhana pode finalmente retornar à sua terra natal e os moçambicanos prestaram as exéquias solenes ao seu herói nacional e último imperador de Gaza.


Desmantelamento da estátua equestre de Mouzinho de Albuquerque em Maputo (Ricardo Rangel, 1975).

    
Bibliografia:
ENES, António (1898). A Guerra de África em 1895, segunda edição. Edições Gama (1945).
http://www.fmsoares.pt/aeb/crono/biografias?registo=Mouzinho%20de%20Albuquerque
http://www.fmsoares.pt/aeb/crono/biografias?registo=Gungunhana


LAC   

domingo, 4 de março de 2018

OS CEM DIAS - A ESTRELA CADENTE DE NAPOLEÃO



São referidos como os Cem Dias (Cent Jours, em francês) os cem dias de governo desde o retorno de Napoleão Bonaparte do exílio em Elba (20 de Março 1815) até à restauração ao trono de Luís XVIII (8 de Julho 1815). O termo foi cunhado pelo perfeito de Paris Gaspard de Chabrol, no seu discurso de graças ao reinvestimento do rei bourbon.


Detalhe da pintura "Napoleão atravessa os Alpes", por J. L. David (1800)


Exílio em Elba e regresso a França


Napoleão passa nove meses na ilha de Elba durante os quais assiste impotente às deliberações do Congresso de Viena. Alimenta a esperança de que as imposições violentas dos plenipotenciários, como a dissolução do Império ou a desmobilização da Grande Armée, semeiem a revolta entre o povo francês. As negociações decorriam de forma atribulada, com as potências a discordarem quanto à divisão dos territórios, chegando ao ponto de se temer novo conflito, desta vez entre as nações aliadas. Os russos e os austríacos alimentam uma disputa tão acesa pela Polónia que o czar Alexandre desafia Metternich para um duelo e este só é impedido pela interferência do imperador.

O astuto corso saberá exactamente como tirar vantagem da situação. No dia 26 de Fevereiro (1815) aproveitará a ausência dos militares ingleses para embarcar com uma guarnição no brigue Inconstant. Dirigir-se-ão a Cannes de onde iniciam marcha sobre Paris, sendo recebidos à passagem por populações em júbilo. Ao terem notícia do regresso do seu general, vários militares lhe acorrem engrossando as suas fileiras. Uma descrição semi-lendária atesta o carisma formidável de Napoleão: Quando tropas afectas à causa real interceptam os homens de Napoleão, este enfrenta-as e abrindo o seu gibão para expor o peito, exclama dramaticamente "Se algum de vós quiser disparar sobre o seu imperador, eis-me aqui!". Os realistas, emocionados com aquela atitude, trocam de lado e juntam-se a Napoleão!

A 20 de Março o exército bonapartista alcança Paris. À chegada as forças realistas oferecem pouca ou nenhuma resistência e muitos desertam para se aliar a Bonaparte. O monarca Luís XVIII há uma semana que se encontrava em fuga. Efectuaria uma paragem em Lille antes de cruzar a fronteira franco-belga para se exilar em Gante.


"Napoleão regressa de Elba" por Charles de Steuben (1818) 


Campanha de Waterloo

Os plenipotenciários de Viena tinham reagido ao retorno de Napoleão declarando-o como usurpador do trono e tornando assim possível matá-lo sem quaisquer consequências legais. As forças da coligação anti-napoleónica não tardam a movimentar-se para fazer face ao ressurgimento da ameaça. Se Napoleão alguma vez nutrira esperança de paz, ela estava agora distante e o era confronto inevitável: Grã-Bretanha, Rússia, Prússia e Áustria fazem planos para a invasão conjunta de França.

A ofensiva, que começa no dia 1 de Junho de 1815, levará um exército em vasta superioridade numérica às fronteiras francesas. A campanha de 1812 nos Estados Unidos que opusera os britânicos à sua antiga colónia provocara a dispersão das suas forças e este é um trunfo que Napoleão não se pode dar ao luxo de desperdiçar. O general sabe que não há tempo a perder e opta por lançar um ataque preventivo antes que as tropas inimigas possam reagrupar.

A Campanha de Waterloo foi travada entre a Armée du Nord e dois exércitos da coligação: um anglo-aliado encabeçado pelo Duque de Wellington e outro prussiano comandado pelo Príncipe Blücher. As hostilidades começam no dia 15 de Junho quando as tropas bonapartistas atravessam o rio Sambre, perto de Charleroi. O plano é ocupar o espaço entre os dois acantonamentos militares e aproveitar  a brecha para os atacar separadamente. Ney enfrentará Wellington na Batalha de Quatre Bras e Napoleão enfrentará o prussiano Blücher na Batalha de Ligny. O saldo dos confrontos revelar-se-á favorável para os franceses com Ney a suster Wellington e Napoleão a derrotar os prussianos. A estrela cintilava ainda nesta que seria a última vitória militar de Napoleão.

A vitória auspiciosa estará na origem de um erro estratégico fatal. Assim que teve conhecimento da derrota dos aliados, Wellington iniciou uma manobra de retirada em direcção a Bruxelas. Imediatamente Napoleão deixa a sua ala nas mãos de Grouchy e assume a vanguarda que se lança no encalce de Wellington. O campo de batalha onde Napoleão e o seu adversário se irão enfrentar será  Waterloo.

A Batalha de Waterloo, decorrida a 18 de Junho de 1815, poria fim a 20 anos de guerra quase ininterrupta na Europa. Embora os corpos militares de Wellington e Napoleão se tenham anulado durante largo tempo, com os tropas coligadas a aguentarem sucessivas acometidas dos franceses, a chegada de forças prussianas que Grouchy não conseguira conter acabarão por desequilibrar a balança a favor de Wellington. A estrela de Napoleão fenecia: o seu ocaso dar-se-á nos meses seguintes.


"Lady Elizabeth Butler’s spectacular painting of the Scots Greys charging, the terror and motion of the horses is perfectly captured. In reality the Scots Greys never reached more than a canter over the battlefield’s soggy ground."

"Hillingford’s iconic painting depicts the Duke of Wellington as a dynamic figure as he rallies his men between French cavalry charges."

A Queda

Derrotado, Napoleão abandona o exército e regressa a Paris. Em 22 de Junho será forçado a abdicar pela segunda vez, simbolicamente, fá-lo-ia a favor do filho Napoleão Francisco, Rei de Roma.

É formado um governo provisório encabeçado por Joseph Fouché. Este determina que Napoleão abandone Paris, retirando-se este para o antigo palácio de Joséphine em Malmaison. Será a sua última residência em França. Perante a aproximação de tropas prussianas com ordens de o capturar vivo ou morto, dirige-se para Rochefort fazendo tenções de embarcar e atingir a América.

Porém os seus planos são frustrados quando é interceptado nas malhas do bloqueio marítimo estabelecido por Sir Henry Hotham. Os marinheiros britânicos estavam alertados para a possibilidade de fuga de Napoleão e foi o capitão Maitland que intuiu que este tentaria Rocheford. Maitland captura o general francês que é levado a bordo do HMS Bellerophon para assinar a sua rendição.

Feito prisioneiro, será transportado até a Grã-Bretanha de onde segue para o exílio na ilha de Santa Helena, uma possessão britânica no Atlântico sul. Acabava assim a história do homem que passou como uma estrela cadente no firmamento político da Europa. Despido do poder e glória, ostracizado numa ilha erma e remota, viria a morrer prematuramente seis anos mais tarde.


"Napoleão a bordo do Bellerophon" por Sir William Quiller Orchardson (c. 1880)

A Convenção de St. Cloud decreta a capitulação de Paris e a rendição dos exércitos napoleónicos. No dia 7 de Julho os dois exércitos da coligação entram triunfalmente em Paris. No dia seguinte Luís XVIII é reconduzido ao trono, restaurando-se o absolutismo num epílogo da Revolução Francesa.

A queda de Napoleão marcou o fim de dois decénios de Guerras Napoleónicas e deu início ao denominado Concerto da Europa, um ambiente político resultante da ordem continental saída do Congresso de Viena, que só será interrompido em 1914 com o eclodir da Primeira Guerra Mundial.



Luís Alves Carpinteiro | Cabo Não 

sábado, 24 de fevereiro de 2018

A MÁSCARA DE AGAMÉMNON


"I gazed upon the face of Agamemnon"
Heinrich Schliemann, 1876

Máscara de Agamémnon (Museu Nacional de Arqueologia de Atenas)


Quando em 1876 o arqueólogo alemão Heinrich Schliemann desenterrou este artefacto da Acrópole de Micenas, acreditou estar perante a máscara funerária do herói homérico Agamémnon. 


Schliemann foi um pioneiro da arqueologia, proeminente pelo seu papel na fixação em Hisarlik, Turquia, para a localização provável de Tróia. Nesta viagem, na qual o alemão operou como ajudante de Frank Calvert embora tenha colhido a maioria dos louros, recuperou ainda o espólio que ficaria conhecido como o "Tesouro de Príamo". Esta expedição arqueológica e as seguintes, foram motivadas pela ambição que Schliemann nutria no seu âmago: provar a historicidade das personagens e dos eventos retratados nas obras épicas de Homero.

Na senda das pistas deixadas pelo geógrafo Pausânias, que apontou Micenas como a última morada do comandante grego da Guerra de Tróia Agamémnon, o arqueólogo dirige-se então àquela região do Peloponeso. Afirmavam os textos do antigo geógrafo que os restos mortais do rei de Micenas teriam sido depositados para além dos limites da povoação, no exterior das muralhas. Porém Schliemann reinterpreta as suas palavras e conduz a expedição ao interior da cidadela, onde inicia escavações.

Durante as semanas que se seguiram a equipa deparou-se com um complexo funerário onde foi possível identificar cinco estelas tumulares, de cujas campas adjacentes se recolheram cinco máscaras em folha de ouro, que repousavam sobre o rosto dos sepultados. Estavam igualmente dispostos ornamentos trabalhados em ouro (anéis, botões, braceletes, cálices), atestando do elevado estatuto social dos mortos, assim como um conjuntos de espadas, sugerindo que todos seriam homens e guerreiros da classe dominante. Schliemann tomou a descoberta como prova da veracidade do episódio descrito por Homero na Ilíada, o que prontamente transmitiu ao Rei Jorge da Grécia por telegrama:


"With great joy I announce to Your Majesty that I have discovered the tombs which the tradition proclaimed by Pausanias indicates to be the graves of Agamemnon, Cassandra, Eurymedon and their companions, all slain at a banquet by Clytemnestra and her lover Aegisthos"

Ilustração do assassinato de Agamémnon retirada de Stories from the Greek Tragedians (1897), Alfred Church


Das máscaras descobertas, a denominada "Máscara de Agamémnon" mereceu mais destaque devido às suas várias características únicas: o seu volume tridimensional, as orelhas salientes, a barba detalhada ou as pálpebras que aparentam estar abertas e fechadas simultaneamente. As suas especificidades eram tantas que alguns arqueólogos duvidaram da sua autenticidade. 

Outras máscaras recolhidas por Schliemann em Mícenas

Hoje sabemos que estas máscaras antecipam em pelo menos três séculos a época em que Agamémnon supostamente reinou. Alguns historiadores especulam que os corpos encontrados possam pertencer a membros de uma dinastia anterior, identificada nos escritos de Homero como os Perséides. De acordo com a mitologia grega, Micenas teve neste período um reinado partilhado por dois monarcas, o que explicaria os túmulos duais.





LAC