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quarta-feira, 27 de dezembro de 2023

O NOVO SÍMBOLO OFICIAL E O APAGAMENTO DA HISTÓRIA


    Perante a notícia avançada pela comunicação social de que o Estado português terá gasto a soma exorbitante de 74 mil euros na renovação da sua imagem institucional, para além do valor dispendido com o caricato resultado que se conhece, pretende-se aqui manifestar o desagrado pelo progressivo apagamento dos símbolos que afirmam a identidade e a cultura portuguesa. No sentido de consciencializar para este processo de que se encarregam os atores políticos num crescente movimento iconoclasta, o Cabo Não lança uma publicação especial dedicada aos símbolos da Nação Portuguesa.


    O artigo 11.º da Constituição da República Portuguesa, com início de vigência em 17 de Agosto de 2005, legisla na sua primeira alínea que "A Bandeira Nacional, símbolo da soberania da República, da independência, unidade e integridade de Portugal, é a adoptada pela República instaurada pela Revolução de 5 de Outubro de 1910". Mais define nas alíneas 2 e 3 que o Hino Nacional é A Portuguesa e que a língua oficial é o Português, respectivamente. Até recentemente, estas diretrizes estavam refletidas na imagem institucional da República Portuguesa, que foi agora substituída por uma insípida e feia composição geométrica, onde se diluem os elementos que caracterizam o Brasão de Armas de Portugal e o distinguem de outros países, nomeadamente a esfera armilar, as cinco quinas e os castelos.

    O design foi desenvolvido pelo Studio Eduardo Aires, liderado por Eduardo Aires, professor do Departamento de Design da Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, que já em 2015 admitia não se rever na bandeira portuguesa e sugeria que esta devia ser repensada.

    O novo símbolo, que é apenas um círculo amarelo entre dois retângulos, um verde e outro vermelho, é defendido por fonte oficial do Governo por supostamente responder "de forma mais eficaz aos novos contextos, determinados pela sofisticação da comunicação digital dinâmica e por uma consciência ecológica reforçada”. É também referido que a nova imagem é “inclusiva, plural e laica”. A bacoca e incompreensível justificação é pautada pela habitual arrogância de que um país não pode manter a sua identidade e ser inclusivo, ser distintivo e ao mesmo tempo plural, devendo antes amorfizar-se em prol de um futuro sem fronteiras e sem culturas nacionais. Esta justificação entra em contrassenso com a própria História de Portugal e com a imagem de nação com raízes pluriculturais de que Portugal goza e deve promover perante a comunidade internacional.
   
    A identidade histórica portuguesa, construída através dos séculos em contexto monárquico e mais tarde republicano, não se reduz às cores da bandeira verde, amarela e vermelha. Se assim fosse, não existiria distinção entre a bandeira portuguesa e a de países como a Bolívia, a Etiópia ou a Lituânia, para além da ordem em que estas cores surgem. Numa comunicação institucional do Estado português impressa a preto e branco, até mesmo este fator de identificação se perderia.

    O atual modelo da Bandeira de Portugal foi desenvolvido por uma comissão nomeada pelo Governo Provisório instaurado pela Revolução de 5 de Outubro de 1910, sendo o grafismo da autoria do pintor Columbano Bordalo Pinheiro o escolhido entre várias propostas. Foi adoptado de facto a 1 de dezembro de 1910 e sancionado oficialmente a 19 de junho de 1911.



Evolução da bandeira Portuguesa 1095?-1910


    A instituição da nova bandeira não se deu sem polémica, tendo sido a conjugação das cores verde e vermelha considerada uma quebra na tradição, ainda que historicamente o uso destas cores não fosse inteiramente novo, estando já presente na bandeira de D. João I que incorporava a flor-de-lis verde, insígnia heráldica da Ordem de Avis. A continuidade ocorreu ao nível das armas de Portugal no seu elemento central e da bipartição vertical em duas cores, que já se verificava na anterior bandeira de 1830, ainda que com um cromatismo diferente.     

    Todos ouvimos na escola, com pouco ou nenhum fundamento, que o verde simboliza a esperança no futuro e o vermelho simboliza o sangue derramado pelos que morreram pela Pátria. Apesar destas invenções posteriores que surgiram da tradição oral, as cores verde e vermelha foram escolhidas pelo seu significado político, uma vez que eram as cores das bandeiras içadas pelos republicanos nos golpes revolucionários de 31 de Janeiro de 1891 e de 5 de Outubro de 1910, afigurando-se como provável que fossem derivações da bandeira da Carbonária portuguesa, sociedade secreta associada aos combates de rua no âmbito do movimento republicano. Augusto Comte, pai da doutrina positivista e que era certamente lido no meio republicano, identificava o verde com "a cor da ordem e progresso das nações futuras". O vermelho surge em finais do século XIX ligado a vários movimentos populares e revolucionários como a Primavera dos Povos de 1848 e a Comuna de Paris de 1871.


Bandeira da Carbonária Portuguesa (1907)


    Estabelecidas algumas hipóteses para o simbolismo das cores da Bandeira de Portugal, este pode ser considerado essencialmente um produto da conjuntura política na qual a bandeira surge, a do republicanismo demoliberal inspirado ao nível europeu pela Revolução Francesa (1789) e subsequentes movimentos políticos revolucionários. Este paralelo é mais evidente na adopção da figura alegórica Marianne como personificação da República Portuguesa, adaptada ao contexto português pelo escultor José Simões de Almeida (1880-1950), à qual já dedicámos um artigo por ocasião dos 110 anos da Implantação da República.

    Por serem os símbolos de identificação nacional com maior duração no tempo, precisamente aqueles que estão omissos na nova imagem institucional, faz sentido aprofundar o significado histórico dos elementos que melhor caracterizam a nossa bandeira e a distinguem de todas as outras. São estes, o Escudo de Portugal, com as suas quinas e castelos, e a esfera armilar.


D. João I invocando Nossa Senhora da Oliveira na Batalha de Aljubarrota



I. O Escudo de Portugal

    O escudo é o mais constante símbolo identificativo da nação portuguesa desde a época da sua fundação na Idade Média. É constituído por um campo central de prata com cinco quinas e por uma bordadura vermelha com castelos. É denominado como "quina" cada um dos cinco escudetes representados nas Armas de Portugal. As quinas vieram a simbolizar por sinédoque várias expressões da portugalidade, como a referência à bandeira como "Bandeira das Quinas" ou no desporto, "a seleção das Quinas". Estão historicamente documentadas pela primeira vez no reinado de D. Sancho I (1185-1211), tendo sido definitivamente fixada a sua disposição e forma de representação em 1481. Segundo a tradição, as quinas representam os cinco reis mouros derrotados por D. Afonso Henriques na Batalha de Ourique (1139). 

    Apesar de existirem divergências nos relatos, a lenda conta que este emblema terá sido oferecido por Jesus Cristo ao primeiro rei de Portugal, no campo da dita batalha, deste modo garantindo-lhe a vitória contra um inimigo poderoso e numericamente superior. Como nação surgida no contexto da Reconquista Cristã, o mito fundacional evoca o lema daquele que terá sido o primeiro monarca cristão, o imperador romano Constantino I, In hoc signo vinces ("com este sinal vencerás"). Também o imperador romano terá tido uma visão no campo da Batalha da Ponte Mílvia (312 d. C.), avistando nos céus uma cruz formada de luz solar, portando a mensagem grega "Εν Τούτῳ Νίκα" (En toutō níka), vulgarmente traduzida para o latim da forma mencionada. Este evento profundamente simbólico assinala o início da conversão do Império Romano ao Cristianismo.

    O elemento com mais variações no Escudo de Portugal foi o número de castelos presentes na bordadura vermelha, sendo que o número de sete foi apenas fixado na segunda metade do século XVI. Surgem pela primeira vez no reinado de D. Afonso III (1238-1253), sendo por isso associados ao papel deste monarca na unificação do território continental português, completada com a Conquista de Faro em 1249. Cada um dos castelos representaria assim cada uma das povoações algarvias conquistadas por este rei, simbolizando mais amplamente a integração do Reino do Algarve na união. É também neste período que "Rei do Algarve" se insere definitivamente na titularia régia. Uma explicação mais prosaica poderá estar relacionada com o contexto da ascensão política de D. Afonso III, que tendo destronado o irmão D. Sancho II, incorporou como elemento distintivo as armas dinásticas de D. Urraca de Castela, sua mãe.



A esfera armilar na Sala da Capela da Torre de Belém


II. A Esfera Armilar  

    A esfera armilar é um instrumento astronómico utilizado na navegação desde a Antiguidade e que evoca para os portugueses o período das grandes navegações. Consiste numa versão reduzida do Cosmos e permaneceu como uma ferramenta utilizada para a geolocalização através de uma posição estimada dos astros aproximadamente até à invenção do telescópio no século XVII.
    
    O símbolo da esfera armilar surge na História de Portugal como empresa pessoal do rei D. Manuel I, que o próprio já tinha adoptado enquanto duque de Beja. Esta foi-lhe atribuída pelo rei D. João II, em 1484, quando o elevou simultaneamente a duque e a herdeiro da coroa portuguesa. A insígnia heráldica vinha acompanhada do lema Spera in Deo e fac bonitatem ("Espera em Deus e faz o bem"), abreviado na palavra Spera. O jogo de palavras por parte do rei foi considerado intencional, simbolizando a "Esfera" como representação do globo terrestre mas também a "Espera" de D. Manuel para subir ao trono.

    A esfera armilar é assim considerada o símbolo máximo do reinado manuelino, que coincide com o apogeu da expansão marítima e do poderio português, aparecendo profusamente nos documentos e arquitetura da época. Mesmo depois da morte de D. Manuel, continuou a ser usada como símbolo do poder imperial, como complemento ou mesmo substituto das armas de Portugal, mais evidentemente nas moedas emitidas em contexto colonial.

     Apesar da sua recorrência visual em todos estes suportes, só passaria a ser parte integrante das armas nacionais  já no século XIX, aquando da formação do efémero Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, em 1819. Após a sua declaração de independência em 1822, o Reino do Brasil manteria a esfera armilar nas suas armas e na sua bandeira até 1889. Em Portugal, no seguimento da Implantação da República, a esfera armilar seria reintroduzida na bandeira, simbolizando a "expansão marítima" e o "génio aventureiro" do povo português, conforme referido no relatório da comissão da nova bandeira nacional.



Luís Alves Carpinteiro | Cabo Não



domingo, 5 de fevereiro de 2023

OS MODERNISTAS: AMADEO DE SOUZA-CARDOSO

 

Aquele que muitos consideram a figura maior da pintura portuguesa do século XX, Amadeo de Souza-Cardoso, viveu a sua breve vida entre Portugal e Paris, onde chega aos 19 anos para continuar os estudos de arquitectura que iniciara em Lisboa. O contacto com o efervescente meio artístico da capital francesa e com um círculo de pintores da vanguarda influenciou radicalmente o seu estilo e em 1907 o seu amigo Manuel Laranjeira já o reconhecia como "um artista no significado absoluto do termo".


Retrato Paysagem , 1913


No dia 14 de Novembro de 1887, nasce em Manhufe, nos arredores de Amarante, Amadeo Ferreira de Souza-Cardoso, um entre a numerosa prole de José Emygdio de Souza-Cardoso, um abastado proprietário rural, e Emília Cândida Ferreira Cardoso.

Em 1905, aos 17 anos, parte para Lisboa onde cursa Arquitectura na Academia de Belas-Artes sem no entanto levar ao término. Neste período desenvolve a sua faceta de desenhador, sobretudo através da caricatura, incentivado pelo amigo Manuel Laranjeira. No dia em que completa 19 anos parte para Paris, acompanhado de Francisco Smith, estabelecendo-se inicialmente no Boulevard de Montparnasse.




A 6 de Janeiro de 1907 encontra-se plenamente estabelecido em Paris e num jantar no restaurante Daumesmil, no Quartier Latin, ilustra a ementa com a caricatura de todos os comensais, desenho que será publicado no jornal portuense “O Primeiro de Janeiro”. Em Outubro do mesmo ano viaja até à Bretanha com o colega pintor Eduardo Viana.

No ano seguinte, alugará um estúdio na Cité Falguiére onde reúne em ambiente de tertúlia e boémia o grupo dos artistas portugueses: Manuel Bentes, Emmérico Nunes, Eduardo Viana, Domingos Rebelo, Francisco Smith, entre outros. Por volta desta época conhece Lúcia Pecetto, com quem casaria em 1914.

"O Triunfo de Baco", encenado por Amadeo, Domingos Rebelo, Emmérico, Bentes e José Pedro Cruz (1906)


Em 1909 volta a mudar-se, desta vez para a Rue de Fleures, aproximando-se do epicentro da actividade artística internacional, paredes meias com Gertrude Stein. Frequenta a Academia Viti do espanhol Anglada Camarasa e amiga-se com o pintor italiano Amedeo Modigliani. Distancia-se dos artistas portugueses a quem atribui uma “rotina atrasada”, para se aproximar de um círculo internacional de artistas, travando conhecimento Brancusi, Juan Gris, Diego Rivera, Sónia e Roberto Delauney, entre outros.

Em 1911 assenta-se na Rue du Colonel Combes, perto do Quai d’Orsay. Em Outubro desse ano é este espaço que acolhe a sua exposição conjunta com Modigliani. Expõe seis obras no Salon des Indépendants, ao qual voltará em 1912 e novamente em 1914.


Amadeo de Souza-Cardoso no seu estúdio (1912)


Em 1912 publica “XX Dessins”, prefaciado por Jerôme Doucet, que o consolida como prodígio recém-chegado à efervescente cena artística parisiense. O álbum vale-lhe críticas muito favoráveis do prestigiado Louis Vauxcelles, famoso adversário de fauvistas e cubistas, que elogia o volume como "a coisa mais maravilhosa que jamais viram nossos olhos" considerando que o autor "criou um mundo novo. A natureza, seres vivos, animais ou criaturas humanas, flora e fauna, saiu do seu cérebro de lírico alucinado". É também neste período que produz um manuscrito ilustrado da Légende de Saint Julien l’Hospitalier de Gustave Flaubert.


"Le Tigre"; XX Dessins (1912)



Amadeo empenha-se em levar o seu trabalho para outras paragens e em 1913 integra a International Exhibition of Modern Art, também conhecida como Armory Show, no que constituiu a primeira mostra de arte moderna europeia em terras norte-americanas, levando obras de artistas como Braque, Matisse ou Marcel Duchamp a Nova Iorque, Chicago e Boston. A exposição é um sucesso para Amadeo e três das suas obras são adquiridas pelo coleccionador Arthur J. Eddy, actualmente integradas na colecção do Art Institute de Chicago. No ano seguinte, pinturas de Souza-Cardoso estarão patentes na obra “Cubist and Post-Impressionism”, publicada pelo coleccionador, onde exalta o seu "sentimento romântico", o "fascínio da sua cor", o seu sentido "feérico". Em Setembro de 1913, após nova mudança de estúdio, o seu trabalho chegará à Alemanha ao ser exibido no I Herbstsalon de Berlin, que toma lugar na Galeria Der Sturm.


Uma das obras adquiridas por Arthur J. Eddy, actualmente no Art Institute of Chicago


Em Abril de 1914 submete três trabalhos para uma exposição da Royal Academy de Londres, que viria a ser cancelada pelo advento da Primeira Guerra Mundial. No verão de 1914 Amadeo encontra-se em Manhufe, onde passa férias, vindo-se impedido de tornar a Paris pelo deflagrar do conflito.

Em 1915 é visitado na terra natal pelo casal Sónia e Robert Delauney, que se fixariam em Vila do Conde. Recupera a relação com Eduardo Viana e conhece Almada Negreiros. Através de Almada estabelece contacto com os Futuristas lisboetas, reunidos inicialmente em torno da revista Orpheu. O exílio inesperado de Amadeo em Portugal não é um momento de “apatia criativa”, pelo contrário constitui a “plena maturação da sua pintura” (Joana Cunha Leal).


Canção Popular - A Russa e o Fígaro (c. 1916)


Em Dezembro de 1916, exibe a sua obra numa exposição sob o título “Abstraccionismo”, primeiro em Lisboa e depois no Porto. A excepcionalidade de Amadeo na cena artística portuguesa faz com que a mostra seja recebida com aura escândalo, culminando o ultraje público em agressões físicas ao pintor. Caberá a Almada Negreiros e a Fernando Pessoa a sua defesa pública.

A 25 de Outubro de 1917, Amadeo morre bruscamente, vítima da gripe espanhola que assolara a Europa no final da Primeira Guerra Mundial. Tinha apenas 30 anos. A maioria da sua obra será legada à Fundação Calouste Gulbenkian pela sua esposa Lúcia Pecetto.

Na sua obra "A Arte em Portugal no século XX", José-Augusto França, conjectura sobre o que poderia ter sido a carreira futura do jovem pintor, que já tinha viagem marcada de volta para Paris:

"Em Paris, Amadeo prosseguiria uma carreira que, à distância, (...) podemos ser levados a sobrestimar; (...) Ele ficará para sempre como uma esperança - e, para a arte portuguesa, como a «primeira descoberta» no século XX, (...) A sua arte foi, com efeito, uma garantia de modernidade oferecida à pintura portuguesa - a única dada no seu tempo, ao lado daquela que Santa-Rita de certo modo recusou proporcionar."


Luís Alves Carpinteiro | Cabo Não

segunda-feira, 23 de maio de 2022

CALOUSTE GULBENKIAN: O SONHO DE UMA FUNDAÇÃO


Calouste Gulbenkian foi um magnata do petróleo, um pioneiro do capitalismo global e do mecenato cultural. Foi um homem entre dois mundos, entre dois tempos, que fez como poucos a fusão entre Ocidente e Oriente.

A sua ação diplomática foi central para a abertura do mercado de petróleo do Médio Oriente ao Ocidente e é-lhe atribuído o início da exploração das reservas iraquianas, à época sobre o controlo do Império Otomano. A vasta fortuna permitiu-lhe satisfazer a sua paixão pelo colecionismo de obras de arte.

Nasceu súbdito arménio do sultão otomano  e fez-se cidadão britânico, acabando os seus dias no Hotel Aviz, em Lisboa. Da sua visão teria origem postumamente a Fundação Calouste Gulbenkian, instituição bem conhecida dos portugueses pelo seu papel na dinamização cultural e filantropia da capital portuguesa e não só.


Imagem 1. Calouste Gulbenkian antes de 1900


Calouste Sarkis Gulbenkian nasce a 23 de Março de 1869, filho de Sarkis e Dirouhie Gulbenkian, em Scutari, um arrabalde de Constantinopla. A sua família era descendente dos Príncipes de Rechdouni, senhores feudais da Grande Arménia. No início do século XI, os Príncipes de Rechdouni estabeleceram-se na Cesareia da Capadócia (atual Kayseri, Turquia), onde assumiram o nome de Vart Badrik, título nobiliárquico bizantino. Com a chegada dos otomanos à região, o nome seria adaptado para a forma turca Gulbenkian.

Assim que concluiu o ensino secundário foi enviado para Marselha para aperfeiçoar a língua francesa. Depois, seguiu rumo a Londres, onde foi admitido no King’s College, completando o curso de Engenharia e Ciências Aplicadas com uma classificação exemplar. Quando julgou que o filho já tinha idade para entrar no mundo dos negócios, o pai Sarkis Gulbenkian promoveu a sua viagem até aos campos petrolíferos de Baku, de onde provinha a maior fonte de fortuna familiar - o querosene vendido na Anatólia. O périplo fica registado no seu diário de viagem de 1890 "La Transcaucasie et la Penínsule d'Apchéron, souvenirs de voyage" (A Transcaucásia e Península de Apchéron, recordações de viagem).


Imagem 2. Calouste Gulbenkian com os irmãos mais novos (Karnig e Vahan)


De volta a Londres, é lá que vem a conhecer Nevarte, do poderoso clã arménio dos Essayan, com quem casaria. A família Essayan, de um grupo social mais abastado que os Gulbenkian, tinha morada no Hyde Park, onde Calouste se torna presença assídua. Impressionado com a gestão que o jovem Calouste fazia dos negócios familiares e com o livro de memórias da Transcaucásia, Kevork Essayan concede-lhe a mão da filha. Calouste e Nevarte casam-se em 1892 e tomam residência em Constantinopla onde, quatro anos depois, nasce o primeiro filho do casal, Nubar Sarkis.

A felicidade na capital otomana não duraria. O recrudescimento de movimentos independentistas arménios e as perdas territoriais na Europa acirram os turcos contra os arménios, e em breve começariam os massacres. Os Gulbenkian escapam por pouco aos Massacres Hamidianos em 1896, e vir-se-iam obrigados a refugiar-se em Londres.

Com a fixação definitiva na Europa, a carreira de Gulbenkian levantaria finalmente voo. Entretanto, tornara-se aprendiz do magnata russo Alexander Mantachev, "um operador sem escrúpulos no mundo cruel dos campos de petróleo de Baku" (CONLIN, 2010). É também neste período que negoceia a fusão entre a Royal Dutch e a Shell, atraindo para o conglomerado concessões na Venezuela e no México.

É a partir de Londres que estabelece contactos e se impõe como “o homem”, conhecedor de tudo o que se relacionasse com o petróleo. Pouco tardaria para dar cartas no negócio e ser nomeado conselheiro financeiro das embaixadas do Império Otomano em Londres e Paris. Em 1902 é-lhe concedida a cidadania britânica.

O petróleo, até aqui usado principalmente na iluminação, multiplica o seu valor com a vulgarização do automóvel e prepara-se a passos largos para ultrapassar o carvão como fonte de energia a nível mundial. Como um dos pioneiros dos estudos do petróleo, Gulbenkian encontra-se bem posicionado para obter autorização para prospeção numa importantíssima zona petrolífera da Mesopotâmia (no que é atualmente território iraquiano) e envolve-se em 1913 na fundação do consórcio Turkish Petroleum Company, onde reúne vários concorrentes da corrida ao petróleo. A nova companhia será detida pela Royal Dutch-Shell (25%), pelo Banco Nacional da Turquia (35%), pelo Deutsche Bank (25%) e por Calouste Gulbenkian (15%).

No início de 1914, a Turkish Petroleum Company é alvo de reestruturação. A Anglo-Persian Oil Company (atual BP), reivindicava uma parte do bolo do petróleo iraquiano, contando para isso com um forte apoio do Ministério dos Negócios Estrangeiros britânico. Para apaziguar a Anglo-Persian, Gulbenkian acedeu a reduzir a sua quota-parte para 5%. Nascia assim "o Senhor Cinco por Cento", alcunha que o acompanhará para a vida.

A derrota dos alemães na Primeira Guerra Mundial teria como consequência a transferência da quota do Deutsche Bank para mãos francesas, através da recém-constituída Compagnie Française des Pétroles (atual Total). Em 1928, Gulbenkian desempenharia um papel fulcral nas negociações do Red Line Agreement, nas quais as grandes petrolíferas britânicas, norte-americanas e francesas se sentam à mesa para repartir as abundantes reservas do recém-dissolvido Império Otomano. O acordo vincularia todos os parceiros com uma cláusula que os impedia de fazer prospeção independente fora da sua "joint venture", evitando assim à competição excessiva e a desregulação dos preços. De acordo com algumas fontes, terá sido o próprio Gulbenkian que com um lápis vermelho terá traçado num mapa os limites do Império Otomano, onde as explorações ficariam circunscritas (Imagem 3). Desta forma, era estabelecido o primeiro cartel de petróleo, antecedendo em três décadas outros exemplos como a OPEC (Organização dos Países Exportadores de Petróleo).


Imagem 3. A Linha Vermelha traçada por Calouste Gulbenkian


Quando em 1929 o regime soviético de Joseph Stalin necessita de financiamento, procede à venda secreta de peças das coleções dos czares russos, sediadas no Museu Hermitage de Petrogrado. Gulbenkian, como sempre, encontra-se bem colocado e é o primeiro a escolher. Este negócio vai desviar dezenas de milhar de obras do Hermitage para coleções privadas e museus ocidentais, de mestres como Rafael, Botticelli, Ticiano ou Rembrandt, levando por exemplo a "Crucificação" de Van Eyck para o Metropolitan de Nova Iorque. Atualmente podem ser visitadas no Museu Calouste Gulbenkian, obras como o "Retrato de Helena Fourment" de Rubens, "Palas Atena" e "Figura de Velho" de Rembrandt ou a escultura "Diana" de Houdon, provenientes deste negócio.

As obras vão ter lugar de destaque no palacete que entretanto adquirira no nº 51 da Avenida d'Iéna, em Paris (Imagem 5), para hospedar a sua impressionante coleção de mobiliário, tapeçarias, ourivesaria, pintura, escultura e livros preciosos. Esta autêntica casa-museu não seria tanto usada por Gulbenkian para dormir, que nas suas deslocações à capital francesa preferia o Hotel Ritz. Muitas do seu espólio integra atualmente as coleções da Fundação Calouste Gulbenkian.

Foi também nesta morada que teve sede a missão diplomática da Pérsia, na qual Gulbenkian assumira funções de conselheiro económico. Durante a Segunda Guerra Mundial, após a ocupação de Paris, o palacete esteve na iminência de ser requisitado e atribuído a uma alta personalidade alemã. Apenas o tato diplomático de Kevork Essayan convenceu os alemães de que a propriedade pertencia a uma potência não-beligerante e o palacete permaneceu intocado.



Imagem 5. Residência de Gulbenkian na Avenida d'Iéna


Quando a Segunda Guerra Mundial eclode, Gulbenkian encontra-se em Paris e aí permanece mesmo após a ocupação nazi. A sua obstinada relutância em cortar laços com a França de Vichy levará o governo britânico a declará-lo um "technical enemy" e a congelar os seus bens. Sentindo-se prejudicado, decide expatriar-se para os Estados Unidos; no entanto nunca chegará a atravessar o Atlântico.

Em abril de 1942, entra em Portugal pela primeira vez, a convite do embaixador português em França. Inicialmente, Lisboa seria apenas uma escala na viagem para Nova Iorque, mas o empresário adoeceu e ficou mais tempo do que antecipara, agradado com o oásis de paz que se vivia durante o conflito que devastava a Europa. Acompanha-se pela esposa Nevarte, a secretária e dama de companhia Madame Theis, o seu massagista e o chefe de cozinha oriental. Sentindo-se bem acolhido, estabelece residência permanente no Hotel Aviz. É neste período que doa ao Museu Nacional de Arte Antiga obras que ainda hoje se encontram na primeiríssima linha do seu espólio, de mestres como Lucas Cranach, Diego Velázquez, Anton Van Dyck, Gustave Courbet, Hubert Robert e Auguste Rodin.

Em 1953, aos 84 anos, redige o seu testamento que prevê a constituição de uma fundação a ser instalada em Lisboa, a qual seria depositária da sua fortuna e da sua coleção de arte. Morreria dois anos depois, em 1955, no Hotel Aviz. No ano seguinte, os estatutos da Fundação Calouste Gulbenkian (que definiam pouco mais do que as suas quatro finalidades de natureza científica, educacional, artística e social), eram aprovados por decreto-lei do governo de Salazar. O assessor jurídico de Gulbenkian, o advogado Dr. José de Azeredo Perdigão, foi nomeado presidente vitalício: permaneceria no cargo durante quase quatro décadas, até à sua morte em 1993.


Imagem 5. Estátua de Gulbenkian, em frente ao Edifício-Sede na Av. de Berna

Os preparativos desencadeiam-se com celeridade e é adquirido o Parque de Santa Gertrudes, perto da Praça de Espanha, onde futuramente terá sede a Fundação. O projeto dos edifícios fica a cargo dos arquitetos Ruy Athouguia, Pedro Cid e Alberto Pessoa e o jardim dos paisagistas António Vianna Barreto e Gonçalo Ribeiro TellesEnquanto duram as obras, a coleção é armazenada no Palácio dos Marqueses de Pombal, em Oeiras, que presencia a azáfama da chegada de obras de arte vindas de Paris ou dos Estados Unidos. 

A 2 de outubro de 1969, são por fim inaugurados o Edifício-Sede, o Museu Calouste Gulbenkian e o jardim, com traços baseados nos aspetos fundamentais do carácter de Gulbenkian, "espiritualidade concentrada, força criadora e simplicidade de vida". A Fundação Calouste Gulbenkian simboliza uma viragem decisiva na vida cultural portuguesa e internacional. Para além da vertente museológica, filantrópica e de apoio às comunidades arménias, a Fundação dispõe atualmente de uma Biblioteca de Arte, uma Orquestra e um Coro.


Consultado:

CONLIN, Jonathan (2010); "Philantropy Without Borders: Calouste Gulbenkian Founding Vision for the Gulbenkian Foundation" in Análise Social vol. XLV (195); 277-306.


Luís Alves Carpinteiro | Cabo Não


domingo, 28 de fevereiro de 2021

LEOPOLDO DE ALMEIDA: O ESCULTOR DO PADRÃO


Perante as recentes declarações do deputado do PS Ascenso Simões, em que propunha a destruição do Padrão dos Descobrimentos, o Cabo Não presta a sua homenagem ao autor do conjunto escultórico do monumento de Belém, Leopoldo de Almeida. Com esta homenagem, convidamos os leitores à reflexão sobre o discurso político acerca de História e Património, e como apesar de cada período escolher os seus vilões e os heróis entre as figuras do passado, é um dever do Estado e das populações a conservação do Património Cultural, como forma de preservar a memória colectiva e de ser fonte de reflexão para as gerações vindouras. Recorrendo ao aforismo do setecentista Edmund Burke: "Aqueles que não conhecem a História, estão condenados a repeti-la"


O Mestre Leopoldo de Almeida (de bata branca), junto da sua estátua equestre de D. João I

Leopoldo Neves de Almeida (1898-1975) foi um escultor e professor português, pertencente à segunda geração modernista. Revelou desde cedo talento para o desenho e para a modelação, tendo ingressado aos 15 anos na Escola de Belas-Artes de Lisboa, onde aprende com grandes mestres como Simões de Almeida (sobrinho), Luciano Freire e Columbano Bordalo Pinheiro.

No dealbar da década de 1930, com a colaboração na construção do Monumento ao Marquês de Pombal, inicia aquela que será uma longa carreira ao serviço da arte pública. Em 1934 realiza baixos-relevos para a fachada do Cineteatro Éden e em 1937 o Monumento a António José de Almeida, em associação com Pardal Monteiro.

Um dos baixos-relevos concebidos por Leopoldo de Almeida para o Cineteatro Éden, Lisboa

Paralelamente à fervorosa actividade criativa, Leopoldo de Almeida desenvolve uma carreira docente, que se inicia em 1934 com o seu retorno à Escola Superior das Belas-Artes de Lisboa, desta vez como professor. A sua relação com esta instituição vai estender-se por mais três décadas, até à sua aposentação em 1965.

Na década de 1940 vai alcançar o pico da carreira artística, com a intervenção na Exposição do Mundo Português. No conjunto escultórico por si produzido, estarão incluídas duas das mais emblemáticas obras da estatuária pública comemorativa daquele período: uma colossal representação feminina da Soberania e o Padrão dos Descobrimentos, feito em parceria com o arquitecto Cottinelli Telmo, um monumento em homenagem às principais figuras do mais insigne período da História de Portugal.



Para a concepção das esculturas do Padrão dos Descobrimentos, Leopoldo de Almeida foi colher inspiração às personagens representadas nos Painéis de São Vicente de Fora, atribuídos ao pintor de corte de Afonso V Nuno Gonçalves, uma janela para os vestuários e moda da época.

A arquitectura ficou a cargo de Cottinelli Telmo, assumindo-se o monumento como uma versão estilizada de uma caravela, com a estatuária colocada em duas rampas que convergem para a "proa". A posição cimeira é ocupada pelo Infante D. Henrique, com uma caravela na mão direita e um mapa na esquerda, figura central e primeiro impulsionador da expansão marítima portuguesa.

Ao mesmo tempo a sua geometria remete-nos para os antigos padrões portugueses, marcos de pedra instalados pelos marinheiros portugueses nas terras recém-descobertas. Quando visto a partir do Mosteiro dos Jerónimos, o monumento assume a forma de uma cruz latina. Numa observação mais atenta é revelada no seu interior uma espada que aponta para o chão: este simbolismo pretende representar a relação próxima entre a cruz e a espada, no muitas vezes violento processo de colonização e expansão do cristianismo.



Para além dos mais ilustres exploradores, navegadores e aventureiros associados a este período da História de Portugal, como Vasco da Gama, Bartolomeu Dias, Fernão de Magalhães ou Fernão Mendes Pinto, figuram também no Padrão personalidades eminentes da alta cultura e da ciência da época, como Luís de Camões, Nuno Gonçalves e Pedro Nunes.

A primeira versão em materiais perecíveis, construída em gesso e suportada por uma estrutura metálica, seria removida em 1943. Apenas em 1960, por ocasião dos 500 anos da morte do Infante D. Henrique, seria reconstruído na sua versão definitiva de betão e pedra de lioz.

A área envolvente seria dotada de uma rosa-dos-ventos com 50 metros de diâmetro, oferecida a Portugal pela República da África do Sul. Já em contexto democrático, o interior do monumento seria intervencionado para potenciar a sua fruição turística, com a inauguração dos espaços do miradouro, do auditório e das salas de exposições, abrindo uma nova fase na vida do monumento - o Centro Cultural das Descobertas. O Padrão dos Descobrimentos é actualmente um dos monumentos mais visitados em Lisboa, tendo recebido só em 2019 mais de 300 mil visitantes.     



Luís Alves Carpinteiro | Cabo Não

sábado, 17 de outubro de 2020

HILDA PUGA, O ROSTO DA NOSSA REPÚBLICA


Por ocasião da comemoração dos 110 anos sobre a Implantação da República Portuguesa (1910-2020), o Cabo Não prestou a sua homenagem a uma figura discreta mas cujo rosto é bem conhecido dos portugueses: Hilda Puga, uma costureira originária da vila alentejana de Arraiolos, que ficou para a História como modelo para o busto da República Portuguesa.

Hilda Puga a posar para o escultor Simões de Almeida (1908)

As origens da representação alegórica da República remontam genericamente ao período de convulsão revolucionária na França de finais do século XVIII. Confrontados com a necessidade de corporizar as virtudes republicanas de modo perceptível para todos os franceses, os jacobinos foram buscar inspiração à Deusa da Liberdade, já imaginada em 1775 por Jean-Michel Moreau.

Moreau por sua vez escolhera a divindade Athena como modelo, evocando a raiz grega da democracia. Com poucas alterações até aos dias de hoje, a República foi representada como uma jovem de semblante determinado e peito descoberto, ostentando o barrete frígio e por vezes uma coroa de louros. 

O primeiro uso oficial ocorre em Julho de 1789, com a emissão de uma medalha que celebra a Tomada da Bastilha. Não tardou para a figura ser acarinhada com o epíteto Marianne, um nome feminino associado às classes populares, que faz eco da participação cívica do povo francês no esforço revolucionário.

A célebre aparição de Marianne na pintura Liberdade guiando o povo (Delacroix; 1830)
 
No primeiro dia de Fevereiro de 1908, o rei D. Carlos e o Príncipe Real D. Luís Filipe são assassinados no Terreiro do Paço. Com o desaparecimento do chefe de estado e do seu herdeiro, a Monarquia Portuguesa entrava numa fase de agonia que só acabaria em Outubro de 1910. Para o recrudescente movimento republicano que antevê a vitória eminente é a hora de criar os seus próprios mitos.

Na última década do século XIX, os republicanos desenvolvem os símbolos que em 1911 se tornarão o Hino e a Bandeira de Portugal. Em 1890 a marcha patriótica A Portuguesa é composta por Alfredo Keil e Henrique Mendonça como reacção ao ultimato britânico. No ano seguinte a bandeira verde e vermelha será desfraldada a partir da varanda da Câmara Municipal do Porto, na revolta republicana gorada de 31 de Janeiro.

Entre 1912 e 1968 Hilda Puga andou no bolso dos portugueses, como o rosto na moeda de 50 centavos

Ficava a faltar uma representação antropomórfica que personificasse a Nação e os valores da república emergente, para a qual a referência será inevitavelmente a Marianne francesa. Em 1908 um grupo de republicanos liderados pelo presidente da Câmara de Lisboa Braamcamp Freire, vão entregar a missão a José Simões de Almeida. Será precisamente na baixa lisboeta que o escultor vai encontrar o rosto e inspiração por detrás da sua efígie da República.

A musa improvável será Hilda Puga, uma jovem de 16 anos empregada na camisaria da Rua Augusta da qual Simões de Almeida é cliente. Capturado pela beleza e simplicidade dos traços da costureira, o escultor vai pedir-lhe para ser sua modelo. Como Hilda é ainda menor de idade o convite é dirigido à sua mãe, que tendo visto outras representações da República, aceita com a condição de a filha posar sempre vestida.

Hilda nunca deixou de costurar durante a vida

As sessões de duas horas decorreram no ateliê do artista, todos os dias ao longo de um mês, debaixo da vigilância constante da mãe. Hilda nunca se vangloriou do seu serviço patriótico, tendo mesmo tentado escondê-lo durante a maior parte da vida devido aos valores da sociedade vigente. Continuou a trabalhar como modesta costureira o resto da sua vida, tendo falecido em 1993 no dia do seu 101º aniversário.


Bibliografia:



LAC

sábado, 8 de fevereiro de 2020

SIDÓNIO PAIS, O PRESIDENTE-REI


Sidónio Bernardino Cardoso da Silva Pais nasceu no primeiro de Maio de 1872 no distrito de Viana do Castelo, mais especificamente na vila de Caminha. Irmão de cinco, Sidónio teve desde cedo de apoiar a sua família que detinha poucas posses e se encontrou numa situação bastante precária após a morte do seu pai no ano de 1883.

Desta forma, o jovem de Caminha enveredou pela carreira militar em 1888, ingressando na Escola do Exército onde se especializou em artilharia. Paralelamente à carreira militar, licencia-se em Coimbra nos cursos de Matemática e Filosofia.

Após concluir o seu doutoramento em 1898, Sidónio passa a leccionar na Faculdade de Coimbra onde ensina matemática, a sua especialidade. Aos 22 anos casa-se com Maria dos Prazeres Bessa, que o acompanhará para o resto da sua vida.

Jovem de ideais republicanos, como muitos da sua época, vem a ser convidado para aderir à Maçonaria e, efectivamente, junta-se à sociedade secreta com o nome de "Irmão Carlyle", da loja maçónica "Estrela d`Alva".

                               Da esquerda para a direita: Bernardino Machado, Teófilo Braga
                                          António José de Almeida e Afonso Costa. (1911)

Entre 4 de Setembro e 3 de Novembro de 1911, Sidónio Pais faz a sua estreia na política ao assumir a pasta do Fomento no governo de João Chagas. É igualmente ministro das Finanças durante o executivo de Augusto de Vasconcelos em 1912. A partir de 17 de Agosto do mesmo ano é enviado numa missão diplomática a Berlim, onde ganha enorme admiração pela nação germânica, retornando em 1916 a Portugal.

Quando regressa depara-se com um enorme descontentamento contra o governo de Afonso Costa, que tinha recentemente envolvido Portugal na Grande Guerra, deixando um rasto de inflação e escassez de bens essenciais no seu caminho e uma opinião pública fortemente dividida com as suas tentativas de tornar o estado laico.

                                Major Sidónio Pais com o Dr. Moura Pinto no acampamento
                                                                  de Campolide. (1917)
                         

Com o apoio inicial do unionista Brito Camacho, Sidónio  vai iniciar uma conspiração entre as patentes do exército com vista a uma revolução armada. No dia 5 de Dezembro de 1917, concentra 1500 homens à volta da actual praça do Marquês de Pombal e no Parque Eduardo VII, coordenando as barragens de artilharia contra as posições governamentais no Rossio.

O golpe sidonista vem a terminar 3 dias depois, resultando na morte de 100 pessoas, formando-se uma Junta Militar Revolucionária com Sidónio como seu Presidente. O novo líder da República Portuguesa iria expor a sua visão para o futuro, afirmando o seguinte quando passava pela região de Beja em 1918: 

"O regime parlamentar já deu todas as suas provas durante oitenta anos de constitucionalismo monárquico e as provas são negativas. Em pleno século XX não é possível o regime absoluto, tendo-se portanto que optar pelo regime republicano; mas para isso é necessário que o país se pronuncie sobre a forma de regime que deve optar: se parlamentar , se presidencialista. O primeiro faliu; o segundo é a Ideia Nova." 

De forma a realizar os seus planos para uma "República Nova", Sidónio vem a planear e a vencer as eleições presidenciais de 1918, obtendo o maior número de votos na história da I República, 513.958 votos por sufrágio universal directo. Durante o seu governo de carácter presidencialista declara-se uma amnistia geral com os monárquicos, termina-se com a censura, altera-se a Lei de Separação entre as Igrejas e o Estado e cultiva-se uma imagem pública fortíssima do Major, que se apresenta constantemente fardado e junto das massas populares.

                               No dia da sua proclamação na varanda dos paços do concelho.
                                                                            (1918)


Não obstante toda a imagem e apoio popular que galvanizou, o regime sidonista não fez face às questões importantes que assolavam a nação. Portugal mantém-se na guerra e sofre uma estrondosa derrota em La Lys, o número de presos políticos aumenta, a censura volta a ser imposta, o Estado impõe um controlo total na vida económica e recorre a linhas de crédito em Inglaterra e, por fim, o sector anarquista do operariado mobiliza-se novamente com as greves e os ataques à bomba.

A 5 de Dezembro de 1918 ocorre a primeira tentativa de assassinato contra o Presidente levada a cabo por um jovem de 19 anos, chamado Luís Maria Baptista, que tenta disparar contra Sidónio quando este saía do Comando Central das Defesas Marítimas. Quando este prime o gatilho, a arma vem a encravar das três vezes que é disparada e Sidónio escapa ileso.

                                Seguido por uma multidão numa das suas visitas a obras
                                                                 de caridade. (1918)

Contudo o destino não lhe escapa e na noite de 14 de Dezembro de 1918, quando este se deslocava à estação do Rossio para apanhar o comboio para o Porto, é morto a tiro pelo republicano radical José Júlio da Costa. O assassino supostamente terá sido ofendido pelo presidente e chegou mesmo a afirmar isto quando cometeu o acto: " O senhor desonrou-me e desta forma vou o matar".

Na confusão, o seu segurança Capitão Cameira agarrou-o, enquanto se gerava um tiroteio, ouvindo as últimas palavras do militar: " Não me apertem rapazes!", ao contrário da lenda jornalística que dita que as palavras finais terão sido: "Morro e morro bem! Salvem a Pátria"!.

Fortes suspeitas caem sobre os ombros da Maçonaria, especialmente quando se soube que o assassino teria visitado Sebastião de Magalhães Lima antes de cometer o acto. Contudo nunca se soube ao certo se alguém teria motivado José Costa a actuar ou se este teria actuado por sua própria vontade.

                                
                                  O corpo do Presidente Sidónio Pais em estado de repouso.
                                                                              (1918)

Deixando para trás um projecto presidencialista pouco pensado e recém indigitado, o regime sidonista pouco sobreviveria depois da morte do seu líder. Tal como se criou um mito de nebulosidade e esperança à volta de D. Sebastião, Sidónio Pais também ganhou formato no imaginário popular como o líder que a pátria poderia ter tido mas lhe foi negado.

Fernando Pessoa que era poeta de poucos elogios para com os líderes políticos, atribui de forma generosa uma dedicatória ao líder sidonista, cujo título em si demonstra bem a origem do mito:

"À Memória do Presidente-Rei Sidónio Pais

(...) Quem ele foi sabe-o a Sorte,
Sabe-o o Mistério e a sua lei.
A vida fê-lo herói, e a Morte
O sagrou Rei!

(...) Sê estrada, gládio, fé, fanal,
Pendão de glória em glória erguido!
Tornas possível Portugal
Por teres sido!

(...) Até que Deus o laço solte
Que prende à terra a asa que somos,
E a curva novamente volte
Ao que já fomos

E no ar de bruma que estremece
(Clarim longínquo matinal)
O DESEJADO enfim regresse
A Portugal!"

FAC

quinta-feira, 6 de junho de 2019

ESPECIAL GUERRA FRIA: MURO DE BERLIM



A adesão ao Plano Marshall, bem como outras formas de ajuda financeira prestadas à Alemanha Ocidental por parte dos Estados Unidos, permitiram que a República Federal florescesse social e economicamente, em acentuado contraste com a República Democrática Alemã (RDA) sob a influência soviética.

Uma mulher tenta espreitar através do muro em 1961

A falta de liberdades políticas assim como as carências económicas que se verificavam na RDA levariam cerca de 2,7 milhões de Alemães de Leste a fugir para Ocidente entre 1949 e 1961. Uma parte considerável dos refugiados eram trabalhadores especializados e intelectuais cuja fuga ameaçava comprometer a viabilidade económica do próprio estado.

Esta sangria demográfica assumiu os contornos de uma verdadeira crise para o regime comunista que desenvolve a partir de 1952 planos para a construção de um muro que separasse as duas Alemanhas.

Em Agosto de 1961 é erigida uma barreira de arame farpado que paulatinamente evolui para um muro de betão com mais de 3 metros de altura e cerca de 150 km de comprimento, protegido por torres de vigia, campos de minas, cães-polícia e guardas armados com ordens para atirar a matar.

Um refugiado corre durante tentativa de fuga (16 de Outubro de 1961)

No bloco soviético o muro foi propagandeado como uma barreira de protecção contra elementos fascistas que conspiravam para evitar a construção de um estado socialista na Alemanha de leste, daí a sua denominação Antifaschistischer Schutzwall (Muralha Anti-Fascista). Do lado ocidental, o chanceler Willy Brandt cunhou o termo "Muro da Vergonha", evocando as restrições do muro à liberdade de movimento. 

O Muro de Berlim tornou-se o símbolo físico da separação ideológica na Europa entre o Ocidente liberal e o Leste comunista. Ao longo da sua existência cerca de 5.000 alemães de Leste lograram por vários meios atravessar o muro e atingiram Berlim Ocidental em segurança, enquanto outros 5.000 foram capturados e 191 foram mortos a tentar.

Em Outubro de 1989, numa reacção em cadeia à vaga de democratização que varria o Bloco Soviético, os comunistas conservadores foram afastados do poder. No dia 9 de Novembro de 1989, após semanas de agitação social, o governo anuncia que todos os cidadãos da RDA estavam autorizados a visitar a Alemanha Ocidental.

Cidadãos no topo do muro em frente ao Portão de Brandemburgo (10 de Novembro de 1989)

Uma multidão de alemães em euforia ocorreram ao muro e juntaram-se em celebração. Ao longo das semanas que se seguiram brechas cada vez maiores foram sendo abertas no muro e fragmentos recolhidos como souvenirs; mais tarde o governo recorreria a máquinas industriais para remover o restante. A queda da Muro de Berlim abriu caminho para a Reunificação da Alemanha, formalizada no dia 3 de Outubro de 1990 e pôs fim à separação física e ideológica que vigorou na Europa durante a Guerra Fria.




LAC