Calouste Gulbenkian foi um magnata do petróleo, um pioneiro do capitalismo global e do mecenato cultural. Foi um homem entre dois mundos, entre dois tempos, que fez como poucos a fusão entre Ocidente e Oriente.
A sua ação diplomática foi central para a abertura do mercado de petróleo do Médio Oriente ao Ocidente e é-lhe atribuído o início da exploração das reservas iraquianas, à época sobre o controlo do Império Otomano. A vasta fortuna permitiu-lhe satisfazer a sua paixão pelo colecionismo de obras de arte.
Nasceu súbdito arménio do sultão otomano e fez-se cidadão britânico, acabando os seus dias no Hotel Aviz, em Lisboa. Da sua visão teria origem postumamente a Fundação Calouste Gulbenkian, instituição bem conhecida dos portugueses pelo seu papel na dinamização cultural e filantropia da capital portuguesa e não só.
Imagem 1. Calouste Gulbenkian antes de 1900 |
Calouste Sarkis Gulbenkian nasce a 23 de Março de 1869, filho de Sarkis e Dirouhie Gulbenkian, em Scutari, um arrabalde de Constantinopla. A sua família era descendente dos Príncipes de Rechdouni, senhores feudais da Grande Arménia. No início do século XI, os Príncipes de Rechdouni estabeleceram-se na Cesareia da Capadócia (atual Kayseri, Turquia), onde assumiram o nome de Vart Badrik, título nobiliárquico bizantino. Com a chegada dos otomanos à região, o nome seria adaptado para a forma turca Gulbenkian.
Assim que concluiu o ensino secundário foi enviado para Marselha para aperfeiçoar a língua francesa. Depois, seguiu rumo a Londres, onde foi admitido no King’s College, completando o curso de Engenharia e Ciências Aplicadas com uma classificação exemplar. Quando julgou que o filho já tinha idade para entrar no mundo dos negócios, o pai Sarkis Gulbenkian promoveu a sua viagem até aos campos petrolíferos de Baku, de onde provinha a maior fonte de fortuna familiar - o querosene vendido na Anatólia. O périplo fica registado no seu diário de viagem de 1890 "La Transcaucasie et la Penínsule d'Apchéron, souvenirs de voyage" (A Transcaucásia e Península de Apchéron, recordações de viagem).
Imagem 2. Calouste Gulbenkian com os irmãos mais novos (Karnig e Vahan) |
De volta a Londres, é lá que vem a conhecer Nevarte, do poderoso clã arménio dos Essayan, com quem casaria. A família Essayan, de um grupo social mais abastado que os Gulbenkian, tinha morada no Hyde Park, onde Calouste se torna presença assídua. Impressionado com a gestão que o jovem Calouste fazia dos negócios familiares e com o livro de memórias da Transcaucásia, Kevork Essayan concede-lhe a mão da filha. Calouste e Nevarte casam-se em 1892 e tomam residência em Constantinopla onde, quatro anos depois, nasce o primeiro filho do casal, Nubar Sarkis.
A felicidade na capital otomana não duraria. O recrudescimento de movimentos independentistas arménios e as perdas territoriais na Europa acirram os turcos contra os arménios, e em breve começariam os massacres. Os Gulbenkian escapam por pouco aos Massacres Hamidianos em 1896, e vir-se-iam obrigados a refugiar-se em Londres.
Com a fixação definitiva na Europa, a carreira de Gulbenkian levantaria finalmente voo. Entretanto, tornara-se aprendiz do magnata russo Alexander Mantachev, "um operador sem escrúpulos no mundo cruel dos campos de petróleo de Baku" (CONLIN, 2010). É também neste período que negoceia a fusão entre a Royal Dutch e a Shell, atraindo para o conglomerado concessões na Venezuela e no México.
É a partir de Londres que estabelece contactos e se impõe como “o homem”, conhecedor de tudo o que se relacionasse com o petróleo. Pouco tardaria para dar cartas no negócio e ser nomeado conselheiro financeiro das embaixadas do Império Otomano em Londres e Paris. Em 1902 é-lhe concedida a cidadania britânica.
O petróleo, até aqui usado principalmente na iluminação, multiplica o seu valor com a vulgarização do automóvel e prepara-se a passos largos para ultrapassar o carvão como fonte de energia a nível mundial. Como um dos pioneiros dos estudos do petróleo, Gulbenkian encontra-se bem posicionado para obter autorização para prospeção numa importantíssima zona petrolífera da Mesopotâmia (no que é atualmente território iraquiano) e envolve-se em 1913 na fundação do consórcio Turkish Petroleum Company, onde reúne vários concorrentes da corrida ao petróleo. A nova companhia será detida pela Royal Dutch-Shell (25%), pelo Banco Nacional da Turquia (35%), pelo Deutsche Bank (25%) e por Calouste Gulbenkian (15%).
No início de 1914, a Turkish Petroleum Company é alvo de reestruturação. A Anglo-Persian Oil Company (atual BP), reivindicava uma parte do bolo do petróleo iraquiano, contando para isso com um forte apoio do Ministério dos Negócios Estrangeiros britânico. Para apaziguar a Anglo-Persian, Gulbenkian acedeu a reduzir a sua quota-parte para 5%. Nascia assim "o Senhor Cinco por Cento", alcunha que o acompanhará para a vida.
A derrota dos alemães na Primeira Guerra Mundial teria como consequência a transferência da quota do Deutsche Bank para mãos francesas, através da recém-constituída Compagnie Française des Pétroles (atual Total). Em 1928, Gulbenkian desempenharia um papel fulcral nas negociações do Red Line Agreement, nas quais as grandes petrolíferas britânicas, norte-americanas e francesas se sentam à mesa para repartir as abundantes reservas do recém-dissolvido Império Otomano. O acordo vincularia todos os parceiros com uma cláusula que os impedia de fazer prospeção independente fora da sua "joint venture", evitando assim à competição excessiva e a desregulação dos preços. De acordo com algumas fontes, terá sido o próprio Gulbenkian que com um lápis vermelho terá traçado num mapa os limites do Império Otomano, onde as explorações ficariam circunscritas (Imagem 3). Desta forma, era estabelecido o primeiro cartel de petróleo, antecedendo em três décadas outros exemplos como a OPEC (Organização dos Países Exportadores de Petróleo).
Imagem 3. A Linha Vermelha traçada por Calouste Gulbenkian |
Quando em 1929 o regime soviético de Joseph Stalin necessita de financiamento, procede à venda secreta de peças das coleções dos czares russos, sediadas no Museu Hermitage de Petrogrado. Gulbenkian, como sempre, encontra-se bem colocado e é o primeiro a escolher. Este negócio vai desviar dezenas de milhar de obras do Hermitage para coleções privadas e museus ocidentais, de mestres como Rafael, Botticelli, Ticiano ou Rembrandt, levando por exemplo a "Crucificação" de Van Eyck para o Metropolitan de Nova Iorque. Atualmente podem ser visitadas no Museu Calouste Gulbenkian, obras como o "Retrato de Helena Fourment" de Rubens, "Palas Atena" e "Figura de Velho" de Rembrandt ou a escultura "Diana" de Houdon, provenientes deste negócio.
As obras vão ter lugar de destaque no palacete que entretanto adquirira no nº 51 da Avenida d'Iéna, em Paris (Imagem 5), para hospedar a sua impressionante coleção de mobiliário, tapeçarias, ourivesaria, pintura, escultura e livros preciosos. Esta autêntica casa-museu não seria tanto usada por Gulbenkian para dormir, que nas suas deslocações à capital francesa preferia o Hotel Ritz. Muitas do seu espólio integra atualmente as coleções da Fundação Calouste Gulbenkian.
Foi também nesta morada que teve sede a missão diplomática da Pérsia, na qual Gulbenkian assumira funções de conselheiro económico. Durante a Segunda Guerra Mundial, após a ocupação de Paris, o palacete esteve na iminência de ser requisitado e atribuído a uma alta personalidade alemã. Apenas o tato diplomático de Kevork Essayan convenceu os alemães de que a propriedade pertencia a uma potência não-beligerante e o palacete permaneceu intocado.
Imagem 5. Residência de Gulbenkian na Avenida d'Iéna |
Quando a Segunda Guerra Mundial eclode, Gulbenkian encontra-se em Paris e aí permanece mesmo após a ocupação nazi. A sua obstinada relutância em cortar laços com a França de Vichy levará o governo britânico a declará-lo um "technical enemy" e a congelar os seus bens. Sentindo-se prejudicado, decide expatriar-se para os Estados Unidos; no entanto nunca chegará a atravessar o Atlântico.
Em abril de 1942, entra em Portugal pela primeira vez, a convite do embaixador português em França. Inicialmente, Lisboa seria apenas uma escala na viagem para Nova Iorque, mas o empresário adoeceu e ficou mais tempo do que antecipara, agradado com o oásis de paz que se vivia durante o conflito que devastava a Europa. Acompanha-se pela esposa Nevarte, a secretária e dama de companhia Madame Theis, o seu massagista e o chefe de cozinha oriental. Sentindo-se bem acolhido, estabelece residência permanente no Hotel Aviz. É neste período que doa ao Museu Nacional de Arte Antiga obras que ainda hoje se encontram na primeiríssima linha do seu espólio, de mestres como Lucas Cranach, Diego Velázquez, Anton Van Dyck, Gustave Courbet, Hubert Robert e Auguste Rodin.
Em 1953, aos 84 anos, redige o seu testamento que prevê a constituição de uma fundação a ser instalada em Lisboa, a qual seria depositária da sua fortuna e da sua coleção de arte. Morreria dois anos depois, em 1955, no Hotel Aviz. No ano seguinte, os estatutos da Fundação Calouste Gulbenkian (que definiam pouco mais do que as suas quatro finalidades de natureza científica, educacional, artística e social), eram aprovados por decreto-lei do governo de Salazar. O assessor jurídico de Gulbenkian, o advogado Dr. José de Azeredo Perdigão, foi nomeado presidente vitalício: permaneceria no cargo durante quase quatro décadas, até à sua morte em 1993.
Imagem 5. Estátua de Gulbenkian, em frente ao Edifício-Sede na Av. de Berna |
Os preparativos desencadeiam-se com celeridade e é adquirido o Parque de Santa Gertrudes, perto da Praça de Espanha, onde futuramente terá sede a Fundação. O projeto dos edifícios fica a cargo dos arquitetos Ruy Athouguia, Pedro Cid e Alberto Pessoa e o jardim dos paisagistas António Vianna Barreto e Gonçalo Ribeiro Telles. Enquanto duram as obras, a coleção é armazenada no Palácio dos Marqueses de Pombal, em Oeiras, que presencia a azáfama da chegada de obras de arte vindas de Paris ou dos Estados Unidos.
A 2 de outubro de 1969, são por fim inaugurados o Edifício-Sede, o Museu Calouste Gulbenkian e o jardim, com traços baseados nos aspetos fundamentais do carácter de Gulbenkian, "espiritualidade concentrada, força criadora e simplicidade de vida". A Fundação Calouste Gulbenkian simboliza uma viragem decisiva na vida cultural portuguesa e internacional. Para além da vertente museológica, filantrópica e de apoio às comunidades arménias, a Fundação dispõe atualmente de uma Biblioteca de Arte, uma Orquestra e um Coro.
Consultado:
CONLIN, Jonathan (2010); "Philantropy Without Borders: Calouste Gulbenkian Founding Vision for the Gulbenkian Foundation" in Análise Social vol. XLV (195); 277-306.
Luís Alves Carpinteiro | Cabo Não
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