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domingo, 5 de fevereiro de 2023

OS MODERNISTAS: AMADEO DE SOUZA-CARDOSO

 

Aquele que muitos consideram a figura maior da pintura portuguesa do século XX, Amadeo de Souza-Cardoso, viveu a sua breve vida entre Portugal e Paris, onde chega aos 19 anos para continuar os estudos de arquitectura que iniciara em Lisboa. O contacto com o efervescente meio artístico da capital francesa e com um círculo de pintores da vanguarda influenciou radicalmente o seu estilo e em 1907 o seu amigo Manuel Laranjeira já o reconhecia como "um artista no significado absoluto do termo".


Retrato Paysagem , 1913


No dia 14 de Novembro de 1887, nasce em Manhufe, nos arredores de Amarante, Amadeo Ferreira de Souza-Cardoso, um entre a numerosa prole de José Emygdio de Souza-Cardoso, um abastado proprietário rural, e Emília Cândida Ferreira Cardoso.

Em 1905, aos 17 anos, parte para Lisboa onde cursa Arquitectura na Academia de Belas-Artes sem no entanto levar ao término. Neste período desenvolve a sua faceta de desenhador, sobretudo através da caricatura, incentivado pelo amigo Manuel Laranjeira. No dia em que completa 19 anos parte para Paris, acompanhado de Francisco Smith, estabelecendo-se inicialmente no Boulevard de Montparnasse.




A 6 de Janeiro de 1907 encontra-se plenamente estabelecido em Paris e num jantar no restaurante Daumesmil, no Quartier Latin, ilustra a ementa com a caricatura de todos os comensais, desenho que será publicado no jornal portuense “O Primeiro de Janeiro”. Em Outubro do mesmo ano viaja até à Bretanha com o colega pintor Eduardo Viana.

No ano seguinte, alugará um estúdio na Cité Falguiére onde reúne em ambiente de tertúlia e boémia o grupo dos artistas portugueses: Manuel Bentes, Emmérico Nunes, Eduardo Viana, Domingos Rebelo, Francisco Smith, entre outros. Por volta desta época conhece Lúcia Pecetto, com quem casaria em 1914.

"O Triunfo de Baco", encenado por Amadeo, Domingos Rebelo, Emmérico, Bentes e José Pedro Cruz (1906)


Em 1909 volta a mudar-se, desta vez para a Rue de Fleures, aproximando-se do epicentro da actividade artística internacional, paredes meias com Gertrude Stein. Frequenta a Academia Viti do espanhol Anglada Camarasa e amiga-se com o pintor italiano Amedeo Modigliani. Distancia-se dos artistas portugueses a quem atribui uma “rotina atrasada”, para se aproximar de um círculo internacional de artistas, travando conhecimento Brancusi, Juan Gris, Diego Rivera, Sónia e Roberto Delauney, entre outros.

Em 1911 assenta-se na Rue du Colonel Combes, perto do Quai d’Orsay. Em Outubro desse ano é este espaço que acolhe a sua exposição conjunta com Modigliani. Expõe seis obras no Salon des Indépendants, ao qual voltará em 1912 e novamente em 1914.


Amadeo de Souza-Cardoso no seu estúdio (1912)


Em 1912 publica “XX Dessins”, prefaciado por Jerôme Doucet, que o consolida como prodígio recém-chegado à efervescente cena artística parisiense. O álbum vale-lhe críticas muito favoráveis do prestigiado Louis Vauxcelles, famoso adversário de fauvistas e cubistas, que elogia o volume como "a coisa mais maravilhosa que jamais viram nossos olhos" considerando que o autor "criou um mundo novo. A natureza, seres vivos, animais ou criaturas humanas, flora e fauna, saiu do seu cérebro de lírico alucinado". É também neste período que produz um manuscrito ilustrado da Légende de Saint Julien l’Hospitalier de Gustave Flaubert.


"Le Tigre"; XX Dessins (1912)



Amadeo empenha-se em levar o seu trabalho para outras paragens e em 1913 integra a International Exhibition of Modern Art, também conhecida como Armory Show, no que constituiu a primeira mostra de arte moderna europeia em terras norte-americanas, levando obras de artistas como Braque, Matisse ou Marcel Duchamp a Nova Iorque, Chicago e Boston. A exposição é um sucesso para Amadeo e três das suas obras são adquiridas pelo coleccionador Arthur J. Eddy, actualmente integradas na colecção do Art Institute de Chicago. No ano seguinte, pinturas de Souza-Cardoso estarão patentes na obra “Cubist and Post-Impressionism”, publicada pelo coleccionador, onde exalta o seu "sentimento romântico", o "fascínio da sua cor", o seu sentido "feérico". Em Setembro de 1913, após nova mudança de estúdio, o seu trabalho chegará à Alemanha ao ser exibido no I Herbstsalon de Berlin, que toma lugar na Galeria Der Sturm.


Uma das obras adquiridas por Arthur J. Eddy, actualmente no Art Institute of Chicago


Em Abril de 1914 submete três trabalhos para uma exposição da Royal Academy de Londres, que viria a ser cancelada pelo advento da Primeira Guerra Mundial. No verão de 1914 Amadeo encontra-se em Manhufe, onde passa férias, vindo-se impedido de tornar a Paris pelo deflagrar do conflito.

Em 1915 é visitado na terra natal pelo casal Sónia e Robert Delauney, que se fixariam em Vila do Conde. Recupera a relação com Eduardo Viana e conhece Almada Negreiros. Através de Almada estabelece contacto com os Futuristas lisboetas, reunidos inicialmente em torno da revista Orpheu. O exílio inesperado de Amadeo em Portugal não é um momento de “apatia criativa”, pelo contrário constitui a “plena maturação da sua pintura” (Joana Cunha Leal).


Canção Popular - A Russa e o Fígaro (c. 1916)


Em Dezembro de 1916, exibe a sua obra numa exposição sob o título “Abstraccionismo”, primeiro em Lisboa e depois no Porto. A excepcionalidade de Amadeo na cena artística portuguesa faz com que a mostra seja recebida com aura escândalo, culminando o ultraje público em agressões físicas ao pintor. Caberá a Almada Negreiros e a Fernando Pessoa a sua defesa pública.

A 25 de Outubro de 1917, Amadeo morre bruscamente, vítima da gripe espanhola que assolara a Europa no final da Primeira Guerra Mundial. Tinha apenas 30 anos. A maioria da sua obra será legada à Fundação Calouste Gulbenkian pela sua esposa Lúcia Pecetto.

Na sua obra "A Arte em Portugal no século XX", José-Augusto França, conjectura sobre o que poderia ter sido a carreira futura do jovem pintor, que já tinha viagem marcada de volta para Paris:

"Em Paris, Amadeo prosseguiria uma carreira que, à distância, (...) podemos ser levados a sobrestimar; (...) Ele ficará para sempre como uma esperança - e, para a arte portuguesa, como a «primeira descoberta» no século XX, (...) A sua arte foi, com efeito, uma garantia de modernidade oferecida à pintura portuguesa - a única dada no seu tempo, ao lado daquela que Santa-Rita de certo modo recusou proporcionar."


Luís Alves Carpinteiro | Cabo Não

segunda-feira, 23 de janeiro de 2023

O ROMANTISMO PORTUGUÊS E A CULTURA POPULAR



O movimento romântico surge em Portugal num contexto histórico e político particular: o do liberalismo e das oposições entre liberais e absolutistas. Não obstante algumas manifestações protoromânticas estarem já presentes na literatura portuguesa anteriormente, em Portugal o Romantismo como movimento emerge em pleno a partir do segundo quartel do século XIX.


Passos Manuel, Almeida Garrett, Alexandre Herculano e José Estevão de Magalhães


No panorama internacional, aparece intimamente relacionado com a construção de uma Europa de Estados-Nação, assumindo-se como veículo dos sentimentos nacionais e do ideário nacionalista. Não raras vezes, os românticos aparecem associados a eventos históricos centrais na formação das nações europeias, como a Guerra da Independência da Grécia (1821-1829), a Unificação de Itália (1870) ou a Unificação da Alemanha (1871), que ocorrem neste período e em que participam.


 Johann von Goethe, uma das figuras cimeiras do Romantismo europeu


O historicismo ou a centralidade da História, que no Romantismo português se materializa sobretudo no revivalismo medieval ou na ressurreição de estilos arquitetónicos como o manuelino, é uma das suas caraterísticas definidoras. Através deste tipo de intervenção os românticos pretendiam evocar um passado glorioso e criar um sentimento nacional, e faziam-no com recurso a momentos-chave da formação das identidades nacionais, no caso português a fundação da nacionalidade na Idade Média e a gesta dos Descobrimentos.

O discurso nacionalista prezava, citando as palavras da investigadora Carla Ribeiro, “a unidade, a originalidade e a diferença”; demonstrava interesse pelas manifestações que suscetíveis de comprovar o génio nacional, investidas de “um carácter único, singular e simultaneamente, comprovando a antiguidade da Nação”. Abraçado também pelos românticos, este desiderato de alcançar uma pureza ancestral encontraria eco nas massas populares e campesinas, dando origem a um culto do demótico, de elogio do povo e das suas coisas.

A visão de "Nação" dos românticos é particular: destacam o Portugal rural como o verdadeiro Portugal. Rejeitam o cosmopolitismo dos grandes centros urbanos, que dizem estar contaminado com o sentimento anglófilo ou francófilo. Para eles as raízes da nacionalidade encontram-se nas gentes campesinas, que viam como um povo eterno e imutável. Reagem a uma crise de identidade nascida de um período de aceleração histórica: apegam-se à simplicidade da vida rural que contrasta com o frenesim urbano, decorrente da industrialização.




No ambiente cultural português, certas figuras tornaram-se indissociáveis do Romantismo e pode-se mesmo dizer que o encarnaram. A este nível é inevitável destacar Almeida Garrett e Alexandre Herculano, intelectuais multifacetados que integraram a denominada primeira geração romântica. A Almeida Garrett é mesmo atribuída a introdução do movimento nos meios literários portugueses, apontando-se para os seus poemas Camões (1825) e Dona Branca (1826) como escritos pioneiros. Ambos desempenham um papel ativo nas Guerras Liberais (1832-1834), estando presentes do lado liberal no Desembarque do Mindelo e no Cerco do Porto, atitude demonstrativa da participação cívica dos românticos.

Terá sido Almeida Garrett o primeiro a fazer um levantamento do património popular português que chega até nós em obras como Romanceiro e Cancioneiro Geral de 1843. Nas palavras do autor era pretendido dar a conhecer a “outra literatura que era a verdadeira nacional, a popular, a vencida, a tiranizada por esses invasores gregos e romanos”. Na introdução ao segundo volume do Romanceiro, Garrett asseverava a necessidade de se “estudar as nossas primitivas fontes poéticas, os romances em verso e as lendas em prosa; as fábulas e crenças velhas, as costumeiras e as superstições antigas; (…) o tom e o espírito verdadeiro português esse é forçoso estudá-lo no grande livro nacional, que é o povo e a suas tradições”.

Em 1851 era a vez de Alexandre Herculano publicar os dois volumes das suas Lendas e Narrativas, uma coletânea de literatura popular na senda das recolhas de folclore dos irmãos Grimm na atual Alemanha ou dos romances de Walter Scott no Reino Unido. No prefácio, Herculano expressava a vontade de “introduzir na literatura nacional um género amplamente cultivado, em todos os países da Europa”, esperando que este seu gesto viesse a constituir “a sementinha donde proveio a floresta”. O levantamento levado a cabo, composto essencialmente por lendas populares e pequenos contos de tradição oral, constituiu um marco assinalável na história literária portuguesa.

Com Garrett e Herculano são consumados os primeiros impulsos de uma prática de recolha da literatura popular e folclore, que sobreviviam apenas através da repetição oral, enfrentando as fragilidades de preservação inerentes a este meio de transmissão. Com maior ou menor intencionalidade, eram criadas as primeiras metodologias de salvaguarda, predecessoras da etnografia, de conversão destas manifestações para um registo escrito com maior capacidade de resistir ao passar do tempo.

Também na música o movimento romântico deixou o seu lastro. Mais associado às óperas de índole nacionalista (com destaque para Verdi na Itália e Wagner na Alemanha), é neste período que se manifesta uma etnomusicologia incipiente, com as primeiras recolhas de música popular. Neste contexto nascerá um fenómeno de intercâmbio entre música erudita e popular. Na esperança de quebrar com as influências estrangeiras predominantes, a música erudita urbana vai colher influências ao cancioneiro rural de raiz tradicional. A partir destas recolhas, compositores eruditos vão levar a cabo uma harmonização da música popular para piano, com vista à criação de uma “composição nacional”. Neste exercício notabilizam-se Alfredo Keil (1850-1907) e Vianna da Motta (1868-1948), entre outros.


“Nenhuma coisa pode ser nacional se não é popular.” Almeida Garrett in Romanceiro e Cancioneiro Geral (1843)

Com esta afirmação, que nos lega na nota introdutória para o seu Romanceiro e Cancioneiro Geral, Almeida Garrett remete-nos para as aceções românticas de “Nação” e de “Povo”. Para os românticos as verdadeiras raízes da nacionalidade seriam encontradas não nas cidades, em acelerada mudança social e tecnológica, mas nos campos, onde vivia o povo que “escudado do progresso e das influências estrangeiras, soube conservar as raízes da Nação, dos valores imemoriais que vivem na tradição, apresentando-os na sua forma mais pura” (RIBEIRO; 2012).

As recolhas de cultura popular levadas a cabo por autores românticos como Garrett e Herculano simbolizam uma demanda pela pureza e pela ancestralidade, com a missão de encontrar a nacionalidade que, a seu ver, seria a “mais verdadeira”. No caso português, a necessidade desta demanda é acentuada por uma conjuntura histórica e política bem localizada: a estruturação de uma sociedade liberal no pós-1820, que exigia, como afirma Augusto Santos Silva “criar uma nova civilização, fazendo vingar novas instâncias e padrões de socialização (…), novos quadros de valores e normas, novas práticas materiais e simbólicas.”

Num contexto ideológico mais amplo, esta valorização do demótico pelos românticos na sua faceta liberal está relacionada com um novo contrato social que seria necessário implementar. Com o fim do absolutismo régio em 1820 a soberania era transferida do direito divino dos monarcas para o povo e os seus representantes. Neste conceito do povo como fonte do poder político estão as raízes das instituições democráticas.


Luís Alves Carpinteiro | Cabo Não

sexta-feira, 20 de janeiro de 2023

O POMBALISMO E A REVIRADEIRA: UMA CISÃO POLÍTICA E ICONOLÓGICA?


É tradicionalmente denominado como “Viradeira” o período inicial do reinado de Dona Maria I, durante o qual se procede à exoneração da estrutura de poder e rede clientelar do Marquês de Pombal e à reversão das políticas do Pombalismo. A reacção anti-pombalina é desencadeada logo após a aclamação de Dona Maria I, com as primeiras medidas a serem tomadas sob a égide do juiz desembargador José Ricalde Pereira de Castro a 13 de Março de 1777. Dona Maria I nunca perdoara a Pombal a perseguição que movera ao clero e à alta nobreza, particularmente a brutal execução pública dos Távoras. Os efeitos mais imediatos são a quebra do controlo estatal sobre sectores da economia, a extinção de monopólios mercantis e a retoma da influência da Igreja e da alta nobreza sobre o Estado. Mas será que esta cisão política também se refletiu na retratística das figuras do poder?


1. Retratos de Pombal e João VI, de van Loo e de Sequeira


O momento histórico da Reviradeira é ainda relevante quando a 10 de Fevereiro de 1792 o príncipe D. João é nomeado regente devido à doença mental da rainha. Urgia criar novas formas de representação para a promoção da imagem do futuro rei D. João VI. No entanto, tal não se verifica de imediato, como fica patente no retrato do príncipe regente por Domingos Sequeira (1802). Neste caso particular, sendo evidentes os paralelos entre a representação de Pombal por van Loo e a do príncipe regente por Sequeira, não deveria D. João considerar indigno fazer-se representar como um mero valido? Ou estaremos perante o caso de um poderoso valido a ser representado como um rei?


2. O Marquês de Pombal iluminando e reconstruindo Lisboa (van Loo; 1766)


As origens relativamente humildes de Sebastião José de Carvalho e Melo podem chocar com esta representação sumptuosa (Ilustração 2) que apenas faz sentido considerando o poder que o mesmo acumulou em vida. Foi um self-made man sem escrúpulos no contexto de rigidez social do Antigo Regime. Conde de Oeiras em 1759, Marquês de Pombal em 1769, D. José bafejou de títulos e honrarias o seu mais importante ministro. O pintor Louis-Michel van Loo, que serviu na corte espanhola, ficou conhecido pelos seus retratos de aparato de monarcas e nobres, como o retrato que produziu da família real borbónica em 1743 (Ilustração 4)

O retrato de Pombal segue esta tradição (apesar das origens de baixa nobreza do retratado) e foi realizado a duas mãos por van Loo e Claude Joseph Vernet, ilustre pintor de paisagens da época que foi responsável pelos fundos marinhos.

Louis-Michel van Loo ficou encarregue do retrato em si, que levou a cabo com base em esboços enviados a partir de Lisboa por Joaquim António Padrão e o seu discípulo João Silvério Carpinetti (Ilustração 3).


3. Gravura de Padrão e Carpinetti (1762)


A encomenda deveu-se a dois abastados comerciantes beneficiados directamente pelas políticas do Pombalismo, o inglês Gerard Devisme e o suíço David Purry, como forma de agradecimento e elogio à obra do “déspota iluminado”.

O retrato que van Loo lhe dedica, com o nome “O Marquês de Pombal iluminando e reconstruindo Lisboa” é pleno de simbolismos políticos e económicos. O título sugere a evocação de Pombal com um déspota esclarecido, que melhora a sociedade com as suas reformas, baseadas na razão e no Iluminismo. Nele podemos observar um líder progressista e com obra realizada, rodeado de objectos que invocam simultaneamente a reconstrução de Lisboa após o Terramoto de 1755 e o seu imenso poder, advindo das funções desempenhadas como secretário de Estado do Reino de D. José.

As suas vestes aristocráticas denunciam as origens nobres e o estatuto social elevado do retratado. A sua postura corporal é reminiscente de uma tradição traçável ao longo da carreira de van Loo: respeita a regra dos terços, aparecendo Pombal numa posição ampla e desafogada com as pernas estendidas e a mão esquerda a apontar o vasto panorama que se vislumbra nas suas costas.


4. A Família de Filipe V (van Loo; 1743)


O patamar imaginário onde a cena toma lugar está posicionado no centro do rio Tejo, com uma paisagem aproximada àquela que na contemporaneidade um automobilista veria a partir da Ponte 25 de Abril. Trata-se do estuário do rio Tejo, com um vai e vem frenético de barcos e mercadorias no rio (e com eles a prosperidade do reino) e a Lisboa reconstruída por Pombal nas margens.

Com a mão esquerda, o retratado dirige o olhar do espectador para a barra do Tejo, de onde afluem as riquezas do reino em forma de mercadorias (ouro, diamantes, vinho, entre outros) e onde se localiza o seu próprio feudo, o condado de Oeiras.

Os objectos distribuídos pela cena aludem às reformas pombalinas. Na mesa, O rei D. José vê-se “miniaturizado” perante o seu todo-poderoso ministro, numa maqueta da sua estátua equestre na Praça do Comércio. As figuras alegóricas que rodeiam a estátua de D. José I, o comércio, a arte e a indústria, simbolizam estas reformas. Estamos perante o retrato de um quase-rei e de uma das pinturas de maior fôlego da carreira de van Loo.



5. Retrato do Príncipe D. João (Sequeira; 1802)


D. João não nasceu destinado a ser rei. A morte precoce do seu irmão D. José, Príncipe do Brasil, em 1788 com apenas 27 anos e a doença mental da rainha catapultam-no para a regência em 1792. Teria de esperar mais 24 anos para finalmente iniciar o seu reinado, na sequência da morte de Dona Maria I em 1816.

Não é por obra do acaso que D. João é um dos monarcas portugueses do qual restam mais representações: houve uma procura activa pela legitimação perante o seu povo e as casas reais europeias, não apenas decorrente do contexto da sua subida ao poder mas também devido à aparente falta de carisma do governante.

Domingos Sequeira foi nomeado Primeiro Pintor de Câmara e Corte em 1802 e é neste contexto que retrata o príncipe regente. No ano seguinte acumularia o cargo de Mestre de Desenho e Pintura de Dona Carlota Joaquina, fortalecendo os seus laços com a casa real portuguesa.

Na representação de Sequeira (Ilustração 5), D. João porta as vestimentas de um aristocrata, com destaque para o gibão adornado por diversas insígnias. Não exibe no entanto qualquer atributo real, derivado de exercer o poder como regente em nome da rainha Dona Maria I, o que se torna por demais evidente pelo busto desta que o observa a partir da mesa que o ladeia pela esquerda.


6. D. Maria I como fundadora da Biblioteca Nacional (1783-1789)


Com a sua mão direita aponta as suas ferramentas do seu trabalho, os papéis, a pena e o tinteiro, numa evocação da burocracia associada à monarquia absoluta e ao exercício do poder através de decretos reais. É também possível observar vários volumes de livros, relacionados com o conhecimento e com a administração sábia e um pequeno sino, usado para chamar os seus numerosos serventes.

Como plano de fundo, Sequeira vai escolher uma paisagem imaginada que faz lembrar a Roma onde passou os seus anos de estudo e mais tarde viria a falecer, com um obelisco, uma coluna encimada por uma estátua de um guerreiro, um aqueduto e ruínas que evocam a Antiguidade Clássica.


As semelhanças com a obra de van Loo vão para além do formalismo da postura corporal, com objectos simbólicos que se repetem e uma estética que invoca o progresso e o poder. A obra de van Loo e Vermet fundou na pintura portuguesa uma estética de representação do poder difícil de contornar, que se mostrou tão relevante para a representação de estadistas como Pombal como para figuras reinantes.

Apesar da renegação da obra de Pombal, no momento da encomenda de obras de arte a dinastia de Bragança evocava a mesma semiótica de uma Europa em fervilhante mutação ideológica, em que os ideais do Iluminismo e do recrudescente Liberalismo começavam a ganhar força, com efeitos observáveis na representação dos líderes políticos. Se num primeiro momento esta estética serviu a consagração de Pombal como déspota iluminado e reconstrutor de Lisboa, durante a regência de D. João esta foi usada para legitimar o seu poder como futuro rei.


Luís Alves Carpinteiro | Cabo Não

sábado, 14 de janeiro de 2023

A SERENÍSSIMA CASA DE BRAGANÇA E O PAÇO DUCAL DE VILA VIÇOSA

 

As origens da Sereníssima Casa de Bragança remontam ao início da Segunda Dinastia, de Avis ou Joanina. O casamento entre Dom Afonso, filho natural do Rei Dom João I e Dona Brites Pereira, filha única do Condestável Dom Nuno Álvares Pereira, funda uma casa poderosa e de primeiríssima nobreza, unidos pelo sangue à família real. Os senhores desta Casa seriam Duques de Bragança, de Barcelos e de Guimarães, Marqueses de Valença e de Vila Viçosa, Condes de Ourém, Arraiolos, Neiva, Faro, Faria e Penafiel, e Senhores de Monforte, Alegrete, Vila do Conde, Braga, Penela, Alter do Chão e Ilha do Corvo; no final do século XV detinham 50 vilas, cidades e castelos, e mais de um milhar de pequenas povoações de norte a sul do país.


Estátua equestre de D. João IV, rei de Portugal

As doações de terras do Rei e do Condestável formam o património inicial da Casa de Bragança, incluindo Vila Viçosa. O lema da família "Depois de Nós Vós" é simbólico do poderio que esta família granjeia nos assuntos do reino logo desde a sua génese. O Ducado de Bragança é finalmente criado quando o Príncipe Regente D. Pedro, 1º Duque de Coimbra, atribui ao seu meio-irmão D. Afonso, Conde de Barcelos, o título de Duque de Bragança a 30 de Dezembro de 1442. O sucessor de D. Afonso, D. Fernando I, é premiado pelas suas façanhas militares com o cargo de Governador de Ceuta e Marquês de Vila Viçosa, nascendo a relação com esta terra alentejana.



Vista aérea do Paço Ducal de Vila Viçosa (Fonte: SIPA)


A influência da Casa de Bragança decaiu durante o reinado de Dom João II. Dom Fernando II foi acusado de traição e executado às ordens do Príncipe Perfeito em 1483, procedendo-se ao confisco de bens, títulos e terras. Mas a sua proeminência foi restabelecida com a subida ao trono de D. Manuel I mediante um juramento de lealdade à Coroa. Será com Dom Jaime I, quarto Duque de Bragança, que a família estabelece definitivamente o seu centro de poder em Vila Viçosa. Por outro lado, Dom Jaime é condenado a financiar e a liderar a conquista de Azamor (1513), após ter encomendado o assassinato da sua primeira esposa Leonor de Guzmán por suspeitas de infidelidade.


Fresco relativo à conquista de Azamor, no Paço Ducal de Vila Viçosa (Fonte: Foto do autor)


Ao reapossar-se das terras previamente confiscadas, Dom Jaime I inicia em 1501 a edificação de uma sede ducal em Vila Viçosa. São deste período o claustro, a capela e as salas de armaria. Quando o seu filho e sucessor, o humanista Dom Teodósio, herda o Paço considera-o "chãmente obrado" e que tinha "desconversáveis serventias".


Será com este mecenas do Renascimento português que o Paço Ducal ganhará imponência. A ele se deve a bela fachada ao gosto italiano e com 110 metros de comprimento, a fazer lembrar o Palácio Rucellai de Leon Battista Alberti, referência incontornável do Primeiro Renascimento. Os dois primeiros pisos foram concebidos durante a campanha de obras que antecipou o casamento do Infante D. Duarte (filho de D. Manuel I) e Isabel de Bragança (irmã de D. Teodósio) em 1537, quando entre outros convidados receberam a Família Real. É também neste período que floresce uma notável Escola de Música sob a égide dos Duques de Bragança.


Pormenor da fachada principal

Palácio Rucellai em Florença (c. 1460)


A Casa de Bragança subiria ao trono somente em 1640, no contexto da Restauração da Independência face a Espanha, quando o oitavo Duque de Bragança é coroado como Dom João IV. O Paço Ducal de Vila Viçosa passará assim a ser uma entre muitas residências reais espalhadas pelo país, usada primariamente como casa de veraneio, terreno agrícola e para a caça.


O Paço Ducal voltará a ter um momento áureo no reinado de João V, aquando dos casamentos duplos entre as casas reais portuguesa e espanhola, episódio conhecimento como "A Troca das Princesas". Novas campanhas de obras vão dotar o Palácio de melhorias no andar nobre, na cozinha e na capela.


Porta manuelina simbolizando o lema "Depois de Nós Vós". Fonte: Foto do autor


Em meados do século XIX, as até então esporádicas visitas da Família Real tornam-se mais frequentes, sendo o Paço alterado sucessivamente nos reinados de Dom Luís e Dom Carlos, para melhor receber a família e a larga comitiva que os acompanhava durante as suas excursões.


Com a Implantação da República o Paço Ducal de Vila Viçosa encerra as portas, que apenas serão reabertas na década de 1940, já no seguimento da criação da Fundação da Casa de Bragança, por vontade expressa em testamento de Dom Manuel II.


O ramo brasileiro da Casa de Bragança reinaria o Brasil pós-colonial desde a sua independência em 1822 até 1889, aquando da abolição da monarquia naquele país. Durante este período decorreria o fim da escravatura no Brasil (com a Lei Áurea de 13 de Maio de 1888), bem como um crescimento económico e desenvolvimento territorial.


Luís Alves Carpinteiro | Cabo Não


sábado, 18 de junho de 2022

A DAMA COM UNICÓRNIO: UMA OBRA EM CAMADAS


A Dama com Unicórnio é uma pintura a óleo da Alta Renascença italiana, período durante o qual um trio de grandes mestres, Rafael, Leonardo da Vinci e Miguel Ângelo, competiam para elevar a arte a um nível de excelência inaudito, antes ou depois das suas vidas e obras. Esta pintura é atribuída a Rafael e integra as coleções da Galeria Borghese, em Roma. No entanto, esta atribuição nem sempre foi consensual e apenas com os restauros que de foi alvo no século XX, que alteraram drasticamente a aparência e interpretação da obra, esta autoria foi reconhecida e inscrita nos inventários da Borghese.


Imagem 1. Dama com Unicórnio (c. 1505-1506), por Rafael Sanzio


A semelhança com outra obra conhecida de todos é demonstrativa da influência e competição entre pintores no Cinquecento italiano. A composição, colocando a retratada numa varanda sobre uma paisagem que se perde ao longe, a aplicação da "Regra dos Terços" e a postura corporal (e das mãos), traça paralelos evidentes com a Mona Lisa, completada por Leonardo da Vinci meros anos antes. A comparação entre as duas obras é descrita pelo historiador de arte Christof Thoenes:

"Por mais descaradamente que Rafael adote a pose, a estrutura de composição e a organização espacial do retrato de Leonardo... a vigilância fria no olhar da jovem é muito diferente da ambiguidade enigmática da Mona Lisa."

 

Imagem 2. Dama com Unicórnio e Mona Lisa, lado a lado


A atribuição da autoria a Rafael foi problemática e conhecem-se outras ao longo da História. A tábua foi associada aos estilos de pintores que estavam ativos neste período, como Agostino Caracci ou Ridolfo Ghirlandaio. Num inventário da Galeria Borghese datado de 1760, esta é atribuída a Pietro Perugino, mestre de Rafael que viveu entre 1448 e 1523. A incerteza quando ao criador deveu-se às múltiplas alterações que se veio a saber que a obra tinha sofrido ao longo dos tempos e que só foram identificadas já no século XX, possibilitadas pelo recurso a tecnologia moderna.

No início do século supramencionado, a aparência da pintura era esta:


Imagem 3. Santa Catarina de Alexandria, previamente ao restauro de 1934


A obra era interpretada como uma representação de Santa Catarina de Alexandria, portando os atributos iconográficos do seu martírio, a folha de palma e a roda, enquanto um manto lhe cobria os ombros. Foi apenas quando foi alvo de um extenso restauro, entre 1934 e 1936, que as camadas de tinta adicionadas posteriormente foram removidas (contendo a roda, a palma e o manto), revelando o unicórnio. Por via da nova informação a autoria de Rafael foi proposta por Roberto Longhi, seguindo uma intuição prévia de Adolfo Venturi. No decurso deste restauro, a pintura foi ainda transferida da tábua de madeira original para uma tela.

Desconhece-se a identidade do pintor responsável pela intervenção e o porquê das modificações a que a obra foi sujeita. Uma descoberta surpreendente estava reservada quando foi alvo de nova intervenção em 1959. Neste ano, a tela torna-se a primeira da História a ser analisada com recurso a Raio X. Através desta nova tecnologia, foi possível descobrir que o unicórnio era também ele um acrescento: no original rafaelita a jovem segurava um pequeno cão, um símbolo iconográfico de fidelidade na época da sua criação. Desta vez, os restauradores optam por deixar o unicórnio intacto.


Imagem 4. O pequeno cão do original rafaelita, descoberto com recurso a Raio X


Outro mistério debruça-se com a identidade da jovem. A hipótese mais propalada é de que se trata de Maddalena Strozi, esposa de Agnolo Doni, tema de outro famoso retrato da autoria de Rafael que se encontra na Galeria de Uffizi, em Florença (Imagem 5). De acordo com outra teoria, a retratada seria Giulia Farnese, amante de Rodrigo Bórgia (Papa Alexandre VI). Esta possibilidade foi em tempos consubstanciada pela presença do unicórnio na heráldica da família Farnese.


Imagem 5. Maddalena Strozzi e Giulia Farnese. O retrato da direita é da autoria de Luca Longhi (1535-40)


Pistas iconográficas

Esta representação tem a particularidade da jovem não ostentar qualquer anel de noivado ou de casamento, o que constitui uma exceção perante outros retratos do período em análise, visto que estes eram vulgarmente encomendados por ocasião de casamento. Por seu lado, o unicórnio que a jovem segura no colo era um símbolo iconográfico de pureza e castidade desde tempos medievais: de acordo com a lenda, apenas uma virgem conseguia domar o unicórnio.


Luís Alves Carpinteiro | Cabo Não


segunda-feira, 23 de maio de 2022

CALOUSTE GULBENKIAN: O SONHO DE UMA FUNDAÇÃO


Calouste Gulbenkian foi um magnata do petróleo, um pioneiro do capitalismo global e do mecenato cultural. Foi um homem entre dois mundos, entre dois tempos, que fez como poucos a fusão entre Ocidente e Oriente.

A sua ação diplomática foi central para a abertura do mercado de petróleo do Médio Oriente ao Ocidente e é-lhe atribuído o início da exploração das reservas iraquianas, à época sobre o controlo do Império Otomano. A vasta fortuna permitiu-lhe satisfazer a sua paixão pelo colecionismo de obras de arte.

Nasceu súbdito arménio do sultão otomano  e fez-se cidadão britânico, acabando os seus dias no Hotel Aviz, em Lisboa. Da sua visão teria origem postumamente a Fundação Calouste Gulbenkian, instituição bem conhecida dos portugueses pelo seu papel na dinamização cultural e filantropia da capital portuguesa e não só.


Imagem 1. Calouste Gulbenkian antes de 1900


Calouste Sarkis Gulbenkian nasce a 23 de Março de 1869, filho de Sarkis e Dirouhie Gulbenkian, em Scutari, um arrabalde de Constantinopla. A sua família era descendente dos Príncipes de Rechdouni, senhores feudais da Grande Arménia. No início do século XI, os Príncipes de Rechdouni estabeleceram-se na Cesareia da Capadócia (atual Kayseri, Turquia), onde assumiram o nome de Vart Badrik, título nobiliárquico bizantino. Com a chegada dos otomanos à região, o nome seria adaptado para a forma turca Gulbenkian.

Assim que concluiu o ensino secundário foi enviado para Marselha para aperfeiçoar a língua francesa. Depois, seguiu rumo a Londres, onde foi admitido no King’s College, completando o curso de Engenharia e Ciências Aplicadas com uma classificação exemplar. Quando julgou que o filho já tinha idade para entrar no mundo dos negócios, o pai Sarkis Gulbenkian promoveu a sua viagem até aos campos petrolíferos de Baku, de onde provinha a maior fonte de fortuna familiar - o querosene vendido na Anatólia. O périplo fica registado no seu diário de viagem de 1890 "La Transcaucasie et la Penínsule d'Apchéron, souvenirs de voyage" (A Transcaucásia e Península de Apchéron, recordações de viagem).


Imagem 2. Calouste Gulbenkian com os irmãos mais novos (Karnig e Vahan)


De volta a Londres, é lá que vem a conhecer Nevarte, do poderoso clã arménio dos Essayan, com quem casaria. A família Essayan, de um grupo social mais abastado que os Gulbenkian, tinha morada no Hyde Park, onde Calouste se torna presença assídua. Impressionado com a gestão que o jovem Calouste fazia dos negócios familiares e com o livro de memórias da Transcaucásia, Kevork Essayan concede-lhe a mão da filha. Calouste e Nevarte casam-se em 1892 e tomam residência em Constantinopla onde, quatro anos depois, nasce o primeiro filho do casal, Nubar Sarkis.

A felicidade na capital otomana não duraria. O recrudescimento de movimentos independentistas arménios e as perdas territoriais na Europa acirram os turcos contra os arménios, e em breve começariam os massacres. Os Gulbenkian escapam por pouco aos Massacres Hamidianos em 1896, e vir-se-iam obrigados a refugiar-se em Londres.

Com a fixação definitiva na Europa, a carreira de Gulbenkian levantaria finalmente voo. Entretanto, tornara-se aprendiz do magnata russo Alexander Mantachev, "um operador sem escrúpulos no mundo cruel dos campos de petróleo de Baku" (CONLIN, 2010). É também neste período que negoceia a fusão entre a Royal Dutch e a Shell, atraindo para o conglomerado concessões na Venezuela e no México.

É a partir de Londres que estabelece contactos e se impõe como “o homem”, conhecedor de tudo o que se relacionasse com o petróleo. Pouco tardaria para dar cartas no negócio e ser nomeado conselheiro financeiro das embaixadas do Império Otomano em Londres e Paris. Em 1902 é-lhe concedida a cidadania britânica.

O petróleo, até aqui usado principalmente na iluminação, multiplica o seu valor com a vulgarização do automóvel e prepara-se a passos largos para ultrapassar o carvão como fonte de energia a nível mundial. Como um dos pioneiros dos estudos do petróleo, Gulbenkian encontra-se bem posicionado para obter autorização para prospeção numa importantíssima zona petrolífera da Mesopotâmia (no que é atualmente território iraquiano) e envolve-se em 1913 na fundação do consórcio Turkish Petroleum Company, onde reúne vários concorrentes da corrida ao petróleo. A nova companhia será detida pela Royal Dutch-Shell (25%), pelo Banco Nacional da Turquia (35%), pelo Deutsche Bank (25%) e por Calouste Gulbenkian (15%).

No início de 1914, a Turkish Petroleum Company é alvo de reestruturação. A Anglo-Persian Oil Company (atual BP), reivindicava uma parte do bolo do petróleo iraquiano, contando para isso com um forte apoio do Ministério dos Negócios Estrangeiros britânico. Para apaziguar a Anglo-Persian, Gulbenkian acedeu a reduzir a sua quota-parte para 5%. Nascia assim "o Senhor Cinco por Cento", alcunha que o acompanhará para a vida.

A derrota dos alemães na Primeira Guerra Mundial teria como consequência a transferência da quota do Deutsche Bank para mãos francesas, através da recém-constituída Compagnie Française des Pétroles (atual Total). Em 1928, Gulbenkian desempenharia um papel fulcral nas negociações do Red Line Agreement, nas quais as grandes petrolíferas britânicas, norte-americanas e francesas se sentam à mesa para repartir as abundantes reservas do recém-dissolvido Império Otomano. O acordo vincularia todos os parceiros com uma cláusula que os impedia de fazer prospeção independente fora da sua "joint venture", evitando assim à competição excessiva e a desregulação dos preços. De acordo com algumas fontes, terá sido o próprio Gulbenkian que com um lápis vermelho terá traçado num mapa os limites do Império Otomano, onde as explorações ficariam circunscritas (Imagem 3). Desta forma, era estabelecido o primeiro cartel de petróleo, antecedendo em três décadas outros exemplos como a OPEC (Organização dos Países Exportadores de Petróleo).


Imagem 3. A Linha Vermelha traçada por Calouste Gulbenkian


Quando em 1929 o regime soviético de Joseph Stalin necessita de financiamento, procede à venda secreta de peças das coleções dos czares russos, sediadas no Museu Hermitage de Petrogrado. Gulbenkian, como sempre, encontra-se bem colocado e é o primeiro a escolher. Este negócio vai desviar dezenas de milhar de obras do Hermitage para coleções privadas e museus ocidentais, de mestres como Rafael, Botticelli, Ticiano ou Rembrandt, levando por exemplo a "Crucificação" de Van Eyck para o Metropolitan de Nova Iorque. Atualmente podem ser visitadas no Museu Calouste Gulbenkian, obras como o "Retrato de Helena Fourment" de Rubens, "Palas Atena" e "Figura de Velho" de Rembrandt ou a escultura "Diana" de Houdon, provenientes deste negócio.

As obras vão ter lugar de destaque no palacete que entretanto adquirira no nº 51 da Avenida d'Iéna, em Paris (Imagem 5), para hospedar a sua impressionante coleção de mobiliário, tapeçarias, ourivesaria, pintura, escultura e livros preciosos. Esta autêntica casa-museu não seria tanto usada por Gulbenkian para dormir, que nas suas deslocações à capital francesa preferia o Hotel Ritz. Muitas do seu espólio integra atualmente as coleções da Fundação Calouste Gulbenkian.

Foi também nesta morada que teve sede a missão diplomática da Pérsia, na qual Gulbenkian assumira funções de conselheiro económico. Durante a Segunda Guerra Mundial, após a ocupação de Paris, o palacete esteve na iminência de ser requisitado e atribuído a uma alta personalidade alemã. Apenas o tato diplomático de Kevork Essayan convenceu os alemães de que a propriedade pertencia a uma potência não-beligerante e o palacete permaneceu intocado.



Imagem 5. Residência de Gulbenkian na Avenida d'Iéna


Quando a Segunda Guerra Mundial eclode, Gulbenkian encontra-se em Paris e aí permanece mesmo após a ocupação nazi. A sua obstinada relutância em cortar laços com a França de Vichy levará o governo britânico a declará-lo um "technical enemy" e a congelar os seus bens. Sentindo-se prejudicado, decide expatriar-se para os Estados Unidos; no entanto nunca chegará a atravessar o Atlântico.

Em abril de 1942, entra em Portugal pela primeira vez, a convite do embaixador português em França. Inicialmente, Lisboa seria apenas uma escala na viagem para Nova Iorque, mas o empresário adoeceu e ficou mais tempo do que antecipara, agradado com o oásis de paz que se vivia durante o conflito que devastava a Europa. Acompanha-se pela esposa Nevarte, a secretária e dama de companhia Madame Theis, o seu massagista e o chefe de cozinha oriental. Sentindo-se bem acolhido, estabelece residência permanente no Hotel Aviz. É neste período que doa ao Museu Nacional de Arte Antiga obras que ainda hoje se encontram na primeiríssima linha do seu espólio, de mestres como Lucas Cranach, Diego Velázquez, Anton Van Dyck, Gustave Courbet, Hubert Robert e Auguste Rodin.

Em 1953, aos 84 anos, redige o seu testamento que prevê a constituição de uma fundação a ser instalada em Lisboa, a qual seria depositária da sua fortuna e da sua coleção de arte. Morreria dois anos depois, em 1955, no Hotel Aviz. No ano seguinte, os estatutos da Fundação Calouste Gulbenkian (que definiam pouco mais do que as suas quatro finalidades de natureza científica, educacional, artística e social), eram aprovados por decreto-lei do governo de Salazar. O assessor jurídico de Gulbenkian, o advogado Dr. José de Azeredo Perdigão, foi nomeado presidente vitalício: permaneceria no cargo durante quase quatro décadas, até à sua morte em 1993.


Imagem 5. Estátua de Gulbenkian, em frente ao Edifício-Sede na Av. de Berna

Os preparativos desencadeiam-se com celeridade e é adquirido o Parque de Santa Gertrudes, perto da Praça de Espanha, onde futuramente terá sede a Fundação. O projeto dos edifícios fica a cargo dos arquitetos Ruy Athouguia, Pedro Cid e Alberto Pessoa e o jardim dos paisagistas António Vianna Barreto e Gonçalo Ribeiro TellesEnquanto duram as obras, a coleção é armazenada no Palácio dos Marqueses de Pombal, em Oeiras, que presencia a azáfama da chegada de obras de arte vindas de Paris ou dos Estados Unidos. 

A 2 de outubro de 1969, são por fim inaugurados o Edifício-Sede, o Museu Calouste Gulbenkian e o jardim, com traços baseados nos aspetos fundamentais do carácter de Gulbenkian, "espiritualidade concentrada, força criadora e simplicidade de vida". A Fundação Calouste Gulbenkian simboliza uma viragem decisiva na vida cultural portuguesa e internacional. Para além da vertente museológica, filantrópica e de apoio às comunidades arménias, a Fundação dispõe atualmente de uma Biblioteca de Arte, uma Orquestra e um Coro.


Consultado:

CONLIN, Jonathan (2010); "Philantropy Without Borders: Calouste Gulbenkian Founding Vision for the Gulbenkian Foundation" in Análise Social vol. XLV (195); 277-306.


Luís Alves Carpinteiro | Cabo Não


domingo, 3 de abril de 2022

REPRESENTAÇÕES DA MEDUSA


Segundo Ovídio, a união incestuosa entre Fórcis e Ceto gerou as três Górgonas, criaturas monstruosas com os cabelos feitos de serpentes cuja mera visão transformava quem as contemplasse em pedra. A única mortal das irmãs era Medusa, que se distinguia pelos seus cabelos louros e para quem a maldição fora castigo divino por ter sido violada por Neptuno, no templo de Minerva. Medusa seria decapitada pelo herói Perseu, que a surpreendeu durante o sono e evitou ser petrificado ao contemplá-la através de um escudo mágico oferecido pelos deuses.

"Neptuno, senhor dos mares, violou Medusa no templo de Minerva. Para que não ficasse impune, ela transformou os cabelos da Górgona em horríveis serpentes." Metamorfoses de Ovídio

 

Perseu com a cabeça de Medusa de Benvenuto Cellini (1545-54)

I. MEDUSA DE GIAN LORENZO BERNINI (c. 1638-1648)

Busto de Medusa de Bernini, Museus Capitolinos, Roma

A Medusa foi um motivo clássico recuperado a partir do Alto Renascimento e que foi retratado por diversos artistas barrocos como Bernini, Caravaggio ou Peter Paul Rubens. A representação de Bernini difere das restantes: contrariamente às pinturas de Caravaggio ou Rubens, que representam a cabeça decepada no desenlace do confronto com Perseu, a escultura de Bernini mostra-nos uma Medusa viva e em plena transformação.

Nenhuma das tentativas anteriores tinha conseguido capturar a ambiguidade moral da Medusa: uma jovem górgona, descrita por vezes como bela, sobre a qual se abateu a terrível maldição de se transformar numa criatura monstruosa. Não podemos deixar de intuir que o autor se condescendeu pela árdua provação da jovem, indo para além da conceção literária e oferecendo-nos um retrato humanizado deste mito grego.

A humanidade da Medusa fica patente no seu estado de descontrolo emocional, com traços exagerados, como é apanágio do barroco. A sua  expressão facial denota uma vívida inteligência: o semblante contorce-se num esgar de sofrimento e ansiedade, exacerbado pelas sobrancelhas desproporcionadas; a sua boca encontra-se entreaberta como se estivesse para chorar, é quase possível imaginar os lábios a tremer.

Especula-se que a inspiração por detrás da escultura de Bernini possa ter sido uma ode do poeta grego Píndaro de cerca de 490 a. C. que descrevia a beleza e aparência física da Medusa antes da transformação.


II. OUTRAS REPRESENTAÇÕES

Cabeça de Medusa de Caravaggio (1597)

Conta a mitologia clássica que após vencer a Medusa, o herói Perseu colocou a sua cabeça num saco, usando a cabeça para resgatar a sua mãe da captura do rei Polidectes de Serifos e para libertar Andrómeda de um monstro marinho. Através de um encantamento, a deusa Minerva colocaria a cabeça da Medusa no escudo de Perseu e é este artefacto mítico que é representado por Michelangelo Merisi da Caravaggio.

Caravaggio realizou duas versões da Cabeça de Medusa num escudo de madeira, presumivelmente inspirado por uma obra prévia de Leonardo Da Vinci que terá existido e foi descrita por Giorgio Vasari num documento de 1568. Esta é a segunda versão realizada para o Cardeal Francesco Maria Del Monte, que se encontra atualmente na Galleria degli Uffizi, Florença.


Medusa de Peter Paul Rubens (c. 1618)

O flamengo Rubens ilustra a decapitação da Medusa em toda a sua repelência. Uma face pálida com olhos arregalados e o cabelo de serpentes que se contorcem e entrelaçam umas nas outras numa desolada paisagem de pedra: algumas lutam, outras mordem-se; do sangue que jorra da cabeça da Medusa nascem pequenas cobras. Frans Snyder, especialista em pintura de animais, terá sido responsável pela pintura das serpentes. Esta obra integra a coleção do Kunsthistorisches Museum de Viena.



Luís Alves Carpinteiro | Cabo Não