sábado, 18 de junho de 2022

A DAMA COM UNICÓRNIO: UMA OBRA EM CAMADAS


A Dama com Unicórnio é uma pintura a óleo da Alta Renascença italiana, período durante o qual um trio de grandes mestres, Rafael, Leonardo da Vinci e Miguel Ângelo, competiam para elevar a arte a um nível de excelência inaudito, antes ou depois das suas vidas e obras. Esta pintura é atribuída a Rafael e integra as coleções da Galeria Borghese, em Roma. No entanto, esta atribuição nem sempre foi consensual e apenas com os restauros que de foi alvo no século XX, que alteraram drasticamente a aparência e interpretação da obra, esta autoria foi reconhecida e inscrita nos inventários da Borghese.


Imagem 1. Dama com Unicórnio (c. 1505-1506), por Rafael Sanzio


A semelhança com outra obra conhecida de todos é demonstrativa da influência e competição entre pintores no Cinquecento italiano. A composição, colocando a retratada numa varanda sobre uma paisagem que se perde ao longe, a aplicação da "Regra dos Terços" e a postura corporal (e das mãos), traça paralelos evidentes com a Mona Lisa, completada por Leonardo da Vinci meros anos antes. A comparação entre as duas obras é descrita pelo historiador de arte Christof Thoenes:

"Por mais descaradamente que Rafael adote a pose, a estrutura de composição e a organização espacial do retrato de Leonardo... a vigilância fria no olhar da jovem é muito diferente da ambiguidade enigmática da Mona Lisa."

 

Imagem 2. Dama com Unicórnio e Mona Lisa, lado a lado


A atribuição da autoria a Rafael foi problemática e conhecem-se outras ao longo da História. A tábua foi associada aos estilos de pintores que estavam ativos neste período, como Agostino Caracci ou Ridolfo Ghirlandaio. Num inventário da Galeria Borghese datado de 1760, esta é atribuída a Pietro Perugino, mestre de Rafael que viveu entre 1448 e 1523. A incerteza quando ao criador deveu-se às múltiplas alterações que se veio a saber que a obra tinha sofrido ao longo dos tempos e que só foram identificadas já no século XX, possibilitadas pelo recurso a tecnologia moderna.

No início do século supramencionado, a aparência da pintura era esta:


Imagem 3. Santa Catarina de Alexandria, previamente ao restauro de 1934


A obra era interpretada como uma representação de Santa Catarina de Alexandria, portando os atributos iconográficos do seu martírio, a folha de palma e a roda, enquanto um manto lhe cobria os ombros. Foi apenas quando foi alvo de um extenso restauro, entre 1934 e 1936, que as camadas de tinta adicionadas posteriormente foram removidas (contendo a roda, a palma e o manto), revelando o unicórnio. Por via da nova informação a autoria de Rafael foi proposta por Roberto Longhi, seguindo uma intuição prévia de Adolfo Venturi. No decurso deste restauro, a pintura foi ainda transferida da tábua de madeira original para uma tela.

Desconhece-se a identidade do pintor responsável pela intervenção e o porquê das modificações a que a obra foi sujeita. Uma descoberta surpreendente estava reservada quando foi alvo de nova intervenção em 1959. Neste ano, a tela torna-se a primeira da História a ser analisada com recurso a Raio X. Através desta nova tecnologia, foi possível descobrir que o unicórnio era também ele um acrescento: no original rafaelita a jovem segurava um pequeno cão, um símbolo iconográfico de fidelidade na época da sua criação. Desta vez, os restauradores optam por deixar o unicórnio intacto.


Imagem 4. O pequeno cão do original rafaelita, descoberto com recurso a Raio X


Outro mistério debruça-se com a identidade da jovem. A hipótese mais propalada é de que se trata de Maddalena Strozi, esposa de Agnolo Doni, tema de outro famoso retrato da autoria de Rafael que se encontra na Galeria de Uffizi, em Florença (Imagem 5). De acordo com outra teoria, a retratada seria Giulia Farnese, amante de Rodrigo Bórgia (Papa Alexandre VI). Esta possibilidade foi em tempos consubstanciada pela presença do unicórnio na heráldica da família Farnese.


Imagem 5. Maddalena Strozzi e Giulia Farnese. O retrato da direita é da autoria de Luca Longhi (1535-40)


Pistas iconográficas

Esta representação tem a particularidade da jovem não ostentar qualquer anel de noivado ou de casamento, o que constitui uma exceção perante outros retratos do período em análise, visto que estes eram vulgarmente encomendados por ocasião de casamento. Por seu lado, o unicórnio que a jovem segura no colo era um símbolo iconográfico de pureza e castidade desde tempos medievais: de acordo com a lenda, apenas uma virgem conseguia domar o unicórnio.


Luís Alves Carpinteiro | Cabo Não


Sem comentários:

Enviar um comentário