Mostrar mensagens com a etiqueta História da Cultura. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta História da Cultura. Mostrar todas as mensagens

domingo, 5 de fevereiro de 2023

OS MODERNISTAS: AMADEO DE SOUZA-CARDOSO

 

Aquele que muitos consideram a figura maior da pintura portuguesa do século XX, Amadeo de Souza-Cardoso, viveu a sua breve vida entre Portugal e Paris, onde chega aos 19 anos para continuar os estudos de arquitectura que iniciara em Lisboa. O contacto com o efervescente meio artístico da capital francesa e com um círculo de pintores da vanguarda influenciou radicalmente o seu estilo e em 1907 o seu amigo Manuel Laranjeira já o reconhecia como "um artista no significado absoluto do termo".


Retrato Paysagem , 1913


No dia 14 de Novembro de 1887, nasce em Manhufe, nos arredores de Amarante, Amadeo Ferreira de Souza-Cardoso, um entre a numerosa prole de José Emygdio de Souza-Cardoso, um abastado proprietário rural, e Emília Cândida Ferreira Cardoso.

Em 1905, aos 17 anos, parte para Lisboa onde cursa Arquitectura na Academia de Belas-Artes sem no entanto levar ao término. Neste período desenvolve a sua faceta de desenhador, sobretudo através da caricatura, incentivado pelo amigo Manuel Laranjeira. No dia em que completa 19 anos parte para Paris, acompanhado de Francisco Smith, estabelecendo-se inicialmente no Boulevard de Montparnasse.




A 6 de Janeiro de 1907 encontra-se plenamente estabelecido em Paris e num jantar no restaurante Daumesmil, no Quartier Latin, ilustra a ementa com a caricatura de todos os comensais, desenho que será publicado no jornal portuense “O Primeiro de Janeiro”. Em Outubro do mesmo ano viaja até à Bretanha com o colega pintor Eduardo Viana.

No ano seguinte, alugará um estúdio na Cité Falguiére onde reúne em ambiente de tertúlia e boémia o grupo dos artistas portugueses: Manuel Bentes, Emmérico Nunes, Eduardo Viana, Domingos Rebelo, Francisco Smith, entre outros. Por volta desta época conhece Lúcia Pecetto, com quem casaria em 1914.

"O Triunfo de Baco", encenado por Amadeo, Domingos Rebelo, Emmérico, Bentes e José Pedro Cruz (1906)


Em 1909 volta a mudar-se, desta vez para a Rue de Fleures, aproximando-se do epicentro da actividade artística internacional, paredes meias com Gertrude Stein. Frequenta a Academia Viti do espanhol Anglada Camarasa e amiga-se com o pintor italiano Amedeo Modigliani. Distancia-se dos artistas portugueses a quem atribui uma “rotina atrasada”, para se aproximar de um círculo internacional de artistas, travando conhecimento Brancusi, Juan Gris, Diego Rivera, Sónia e Roberto Delauney, entre outros.

Em 1911 assenta-se na Rue du Colonel Combes, perto do Quai d’Orsay. Em Outubro desse ano é este espaço que acolhe a sua exposição conjunta com Modigliani. Expõe seis obras no Salon des Indépendants, ao qual voltará em 1912 e novamente em 1914.


Amadeo de Souza-Cardoso no seu estúdio (1912)


Em 1912 publica “XX Dessins”, prefaciado por Jerôme Doucet, que o consolida como prodígio recém-chegado à efervescente cena artística parisiense. O álbum vale-lhe críticas muito favoráveis do prestigiado Louis Vauxcelles, famoso adversário de fauvistas e cubistas, que elogia o volume como "a coisa mais maravilhosa que jamais viram nossos olhos" considerando que o autor "criou um mundo novo. A natureza, seres vivos, animais ou criaturas humanas, flora e fauna, saiu do seu cérebro de lírico alucinado". É também neste período que produz um manuscrito ilustrado da Légende de Saint Julien l’Hospitalier de Gustave Flaubert.


"Le Tigre"; XX Dessins (1912)



Amadeo empenha-se em levar o seu trabalho para outras paragens e em 1913 integra a International Exhibition of Modern Art, também conhecida como Armory Show, no que constituiu a primeira mostra de arte moderna europeia em terras norte-americanas, levando obras de artistas como Braque, Matisse ou Marcel Duchamp a Nova Iorque, Chicago e Boston. A exposição é um sucesso para Amadeo e três das suas obras são adquiridas pelo coleccionador Arthur J. Eddy, actualmente integradas na colecção do Art Institute de Chicago. No ano seguinte, pinturas de Souza-Cardoso estarão patentes na obra “Cubist and Post-Impressionism”, publicada pelo coleccionador, onde exalta o seu "sentimento romântico", o "fascínio da sua cor", o seu sentido "feérico". Em Setembro de 1913, após nova mudança de estúdio, o seu trabalho chegará à Alemanha ao ser exibido no I Herbstsalon de Berlin, que toma lugar na Galeria Der Sturm.


Uma das obras adquiridas por Arthur J. Eddy, actualmente no Art Institute of Chicago


Em Abril de 1914 submete três trabalhos para uma exposição da Royal Academy de Londres, que viria a ser cancelada pelo advento da Primeira Guerra Mundial. No verão de 1914 Amadeo encontra-se em Manhufe, onde passa férias, vindo-se impedido de tornar a Paris pelo deflagrar do conflito.

Em 1915 é visitado na terra natal pelo casal Sónia e Robert Delauney, que se fixariam em Vila do Conde. Recupera a relação com Eduardo Viana e conhece Almada Negreiros. Através de Almada estabelece contacto com os Futuristas lisboetas, reunidos inicialmente em torno da revista Orpheu. O exílio inesperado de Amadeo em Portugal não é um momento de “apatia criativa”, pelo contrário constitui a “plena maturação da sua pintura” (Joana Cunha Leal).


Canção Popular - A Russa e o Fígaro (c. 1916)


Em Dezembro de 1916, exibe a sua obra numa exposição sob o título “Abstraccionismo”, primeiro em Lisboa e depois no Porto. A excepcionalidade de Amadeo na cena artística portuguesa faz com que a mostra seja recebida com aura escândalo, culminando o ultraje público em agressões físicas ao pintor. Caberá a Almada Negreiros e a Fernando Pessoa a sua defesa pública.

A 25 de Outubro de 1917, Amadeo morre bruscamente, vítima da gripe espanhola que assolara a Europa no final da Primeira Guerra Mundial. Tinha apenas 30 anos. A maioria da sua obra será legada à Fundação Calouste Gulbenkian pela sua esposa Lúcia Pecetto.

Na sua obra "A Arte em Portugal no século XX", José-Augusto França, conjectura sobre o que poderia ter sido a carreira futura do jovem pintor, que já tinha viagem marcada de volta para Paris:

"Em Paris, Amadeo prosseguiria uma carreira que, à distância, (...) podemos ser levados a sobrestimar; (...) Ele ficará para sempre como uma esperança - e, para a arte portuguesa, como a «primeira descoberta» no século XX, (...) A sua arte foi, com efeito, uma garantia de modernidade oferecida à pintura portuguesa - a única dada no seu tempo, ao lado daquela que Santa-Rita de certo modo recusou proporcionar."


Luís Alves Carpinteiro | Cabo Não

segunda-feira, 23 de janeiro de 2023

O ROMANTISMO PORTUGUÊS E A CULTURA POPULAR



O movimento romântico surge em Portugal num contexto histórico e político particular: o do liberalismo e das oposições entre liberais e absolutistas. Não obstante algumas manifestações protoromânticas estarem já presentes na literatura portuguesa anteriormente, em Portugal o Romantismo como movimento emerge em pleno a partir do segundo quartel do século XIX.


Passos Manuel, Almeida Garrett, Alexandre Herculano e José Estevão de Magalhães


No panorama internacional, aparece intimamente relacionado com a construção de uma Europa de Estados-Nação, assumindo-se como veículo dos sentimentos nacionais e do ideário nacionalista. Não raras vezes, os românticos aparecem associados a eventos históricos centrais na formação das nações europeias, como a Guerra da Independência da Grécia (1821-1829), a Unificação de Itália (1870) ou a Unificação da Alemanha (1871), que ocorrem neste período e em que participam.


 Johann von Goethe, uma das figuras cimeiras do Romantismo europeu


O historicismo ou a centralidade da História, que no Romantismo português se materializa sobretudo no revivalismo medieval ou na ressurreição de estilos arquitetónicos como o manuelino, é uma das suas caraterísticas definidoras. Através deste tipo de intervenção os românticos pretendiam evocar um passado glorioso e criar um sentimento nacional, e faziam-no com recurso a momentos-chave da formação das identidades nacionais, no caso português a fundação da nacionalidade na Idade Média e a gesta dos Descobrimentos.

O discurso nacionalista prezava, citando as palavras da investigadora Carla Ribeiro, “a unidade, a originalidade e a diferença”; demonstrava interesse pelas manifestações que suscetíveis de comprovar o génio nacional, investidas de “um carácter único, singular e simultaneamente, comprovando a antiguidade da Nação”. Abraçado também pelos românticos, este desiderato de alcançar uma pureza ancestral encontraria eco nas massas populares e campesinas, dando origem a um culto do demótico, de elogio do povo e das suas coisas.

A visão de "Nação" dos românticos é particular: destacam o Portugal rural como o verdadeiro Portugal. Rejeitam o cosmopolitismo dos grandes centros urbanos, que dizem estar contaminado com o sentimento anglófilo ou francófilo. Para eles as raízes da nacionalidade encontram-se nas gentes campesinas, que viam como um povo eterno e imutável. Reagem a uma crise de identidade nascida de um período de aceleração histórica: apegam-se à simplicidade da vida rural que contrasta com o frenesim urbano, decorrente da industrialização.




No ambiente cultural português, certas figuras tornaram-se indissociáveis do Romantismo e pode-se mesmo dizer que o encarnaram. A este nível é inevitável destacar Almeida Garrett e Alexandre Herculano, intelectuais multifacetados que integraram a denominada primeira geração romântica. A Almeida Garrett é mesmo atribuída a introdução do movimento nos meios literários portugueses, apontando-se para os seus poemas Camões (1825) e Dona Branca (1826) como escritos pioneiros. Ambos desempenham um papel ativo nas Guerras Liberais (1832-1834), estando presentes do lado liberal no Desembarque do Mindelo e no Cerco do Porto, atitude demonstrativa da participação cívica dos românticos.

Terá sido Almeida Garrett o primeiro a fazer um levantamento do património popular português que chega até nós em obras como Romanceiro e Cancioneiro Geral de 1843. Nas palavras do autor era pretendido dar a conhecer a “outra literatura que era a verdadeira nacional, a popular, a vencida, a tiranizada por esses invasores gregos e romanos”. Na introdução ao segundo volume do Romanceiro, Garrett asseverava a necessidade de se “estudar as nossas primitivas fontes poéticas, os romances em verso e as lendas em prosa; as fábulas e crenças velhas, as costumeiras e as superstições antigas; (…) o tom e o espírito verdadeiro português esse é forçoso estudá-lo no grande livro nacional, que é o povo e a suas tradições”.

Em 1851 era a vez de Alexandre Herculano publicar os dois volumes das suas Lendas e Narrativas, uma coletânea de literatura popular na senda das recolhas de folclore dos irmãos Grimm na atual Alemanha ou dos romances de Walter Scott no Reino Unido. No prefácio, Herculano expressava a vontade de “introduzir na literatura nacional um género amplamente cultivado, em todos os países da Europa”, esperando que este seu gesto viesse a constituir “a sementinha donde proveio a floresta”. O levantamento levado a cabo, composto essencialmente por lendas populares e pequenos contos de tradição oral, constituiu um marco assinalável na história literária portuguesa.

Com Garrett e Herculano são consumados os primeiros impulsos de uma prática de recolha da literatura popular e folclore, que sobreviviam apenas através da repetição oral, enfrentando as fragilidades de preservação inerentes a este meio de transmissão. Com maior ou menor intencionalidade, eram criadas as primeiras metodologias de salvaguarda, predecessoras da etnografia, de conversão destas manifestações para um registo escrito com maior capacidade de resistir ao passar do tempo.

Também na música o movimento romântico deixou o seu lastro. Mais associado às óperas de índole nacionalista (com destaque para Verdi na Itália e Wagner na Alemanha), é neste período que se manifesta uma etnomusicologia incipiente, com as primeiras recolhas de música popular. Neste contexto nascerá um fenómeno de intercâmbio entre música erudita e popular. Na esperança de quebrar com as influências estrangeiras predominantes, a música erudita urbana vai colher influências ao cancioneiro rural de raiz tradicional. A partir destas recolhas, compositores eruditos vão levar a cabo uma harmonização da música popular para piano, com vista à criação de uma “composição nacional”. Neste exercício notabilizam-se Alfredo Keil (1850-1907) e Vianna da Motta (1868-1948), entre outros.


“Nenhuma coisa pode ser nacional se não é popular.” Almeida Garrett in Romanceiro e Cancioneiro Geral (1843)

Com esta afirmação, que nos lega na nota introdutória para o seu Romanceiro e Cancioneiro Geral, Almeida Garrett remete-nos para as aceções românticas de “Nação” e de “Povo”. Para os românticos as verdadeiras raízes da nacionalidade seriam encontradas não nas cidades, em acelerada mudança social e tecnológica, mas nos campos, onde vivia o povo que “escudado do progresso e das influências estrangeiras, soube conservar as raízes da Nação, dos valores imemoriais que vivem na tradição, apresentando-os na sua forma mais pura” (RIBEIRO; 2012).

As recolhas de cultura popular levadas a cabo por autores românticos como Garrett e Herculano simbolizam uma demanda pela pureza e pela ancestralidade, com a missão de encontrar a nacionalidade que, a seu ver, seria a “mais verdadeira”. No caso português, a necessidade desta demanda é acentuada por uma conjuntura histórica e política bem localizada: a estruturação de uma sociedade liberal no pós-1820, que exigia, como afirma Augusto Santos Silva “criar uma nova civilização, fazendo vingar novas instâncias e padrões de socialização (…), novos quadros de valores e normas, novas práticas materiais e simbólicas.”

Num contexto ideológico mais amplo, esta valorização do demótico pelos românticos na sua faceta liberal está relacionada com um novo contrato social que seria necessário implementar. Com o fim do absolutismo régio em 1820 a soberania era transferida do direito divino dos monarcas para o povo e os seus representantes. Neste conceito do povo como fonte do poder político estão as raízes das instituições democráticas.


Luís Alves Carpinteiro | Cabo Não