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quarta-feira, 18 de outubro de 2023

A ACADEMIA REAL DA HISTÓRIA PORTUGUESA


Alegoria à Academia Real da História (1735), por Francisco Vieira Lusitano


A 8 de dezembro de 1720, no dia da Imaculada Conceição, era fundada por decreto de D. João V a Academia Real da História Portuguesa, com o objetivo de “escrever a História de Portugal e de suas Conquistas”. Foi adotada como divisa a frase latina Restituet omnia, onde se afirmava a vocação de restaurar toda a memória e reunir todos os documentos, com o propósito de redigir pelos métodos modernos a História Eclesiástica e Secular de Portugal e dos seus domínios ultramarinos.

Esta missão foi depositada nos 50 sócios que compunham a Real Academia: “40 da Academia de Anónimos e das Conferências Discretas e 10 escolhidos pelo Rei”. Entre os seus académicos notáveis encontravam-se D. Manuel Caetano de Sousa, os marqueses de Abrantes, de Alegrete, de Fronteira, de Valença, o conde da Ericeira, D. António Caetano de Sousa, Manuel Teles da Silva, Diogo Barbosa Machado, Alexandre Ferreira, Jerónimo Contador Argote, Raphael Bluteau ou o Padre António dos Reis.

A sua génese insere-se num Iluminismo incipiente manifestado no reinado de D. João V e deveu-se em parte à ação política de dois dos seus principais impulsionadores, D. António Caetano de Sousa e Francisco Xavier de Meneses, conde da Ericeira. É sucessora de diversos cenáculos e tertúlias em campos díspares como as letras, as ciências, a filosofia e as artes (as chamadas Academias Menores) que proliferam em Lisboa desde meados do século XVII: Academia dos Generosos (1647), Academia Portuguesa (1696), Academia da História Eclesiástica (1715), Academia dos Ilustrados (1716), Academia dos Anónimos (1717) e Academia dos Retóricos (1720).

A Academia Real da História vai agregar alguns dos membros das Academias Menores cuja experiência tinha despertado o interesse para a atividade historiográfica (notavelmente a Academia Portuguesa e a Academia da História Eclesiástica) e  assumir um carácter pioneiro no contexto europeu, antecedendo em 18 anos a sua homóloga espanhola, decretada a 18 de abril de 1738 pelo rei Filipe V.

D. António Caetano de Sousa (1674-1759)


A Academia reunia de quinze em quinze dias no Paço dos Duques de Bragança para a "leitura das Memórias e dos Catálogos de nomes ilustres". Os seus trabalhos decorreram com invulgar liberdade para a época, tendo o Decreto de 29 de abril de 1722 isentado as suas publicações de censura prévia do Desembargo do Paço, ficando apenas sujeitas à supervisão de quatro censores privados. Em 1727, é lançado a História da Academia Real da História Portuguesa, pelo marquês de Alegrete.

O seu legado é composto por um corpus de 15 volumes (Coleção dos documentos e memórias, publicada anualmente entre 1721 e 1736) e as obras dos seus sócios, entre as quais se destacam a História Genealógica da Casa Real Portuguesa, de D. António Caetano de Sousa, e as respetivas Provas (1735-1748); Memórias sobre D. Sebastião, de Diogo Barbosa Machado (1736-1751); Biblioteca Lusitana, de Diogo Barbosa Machado (1741-1759); Notícias Cronológicas da Universidade de Coimbra, de Francisco Leitão Ferreira (1729); Memórias para a História Eclesiástica do Arcebispado de Braga, de D. Jerónimo Contador de Argote (1732-1747).

História Genealógica da Casa Real Portuguesa (folha de rosto)


A análise da Coleção dos documentos e memórias permite-nos obter preciosas pistas de como decorriam os labores científicos. Segundo Humberto Baquero Moreno "a grande preocupação dos membros da Academia consistiu na recolha de materiais que permitissem edificar uma história religiosa e secular de Portugal". O poder legislativo do monarca acompanhou e deu ampla cobertura aos académicos com medidas que podem ser consideradas percursoras dos planos de salvaguarda modernos, como a proteção de "papéis, medalhas, restos arqueológicos e outros materiais cuja utilidade era evidente" e a proibição da destruição de "estátuas, mármores e cipos" e ainda "medalhas e moedas antigas que perdurassem até ao reinado de D. Sebastião".

A decadência desta instituição foi, todavia, paulatina mas inexorável, cessando-se a publicação das suas coleções logo em 1736. A crise foi exacerbada pelo Terramoto de Lisboa de 1755 que provocou a derrocada do Paço dos Duques de Bragança e com ela a perda de parte importante do acervo documental. De acordo com Baquero Moreno, o Pombalismo foi "adverso à sua existência" por ver nestes movimentos da nobreza culta um obstáculo à política centralizadora.

A anunciada extinção ocorre, por falta de atividade, por volta de 1776, sendo também atribuída às “desavenças que desde o início dividiram os académicos” ou à “criação da Academia Real das Ciências”. De modo a preencher o vácuo deixado pela ausência de estudos históricos o rei D. José criou a cadeira de Diplomática, a qual "tinha em vista o conhecimento interpretativo dos conhecimentos atinentes à História de Portugal", e chegaria à Universidade de Coimbra no reinado seguinte, pela mão de D. Maria I. Em 1936, no âmbito das celebrações dos 10 anos do Estado Novo, dá-se a fundação da Academia Portuguesa de História, que se assume como sua sucessora e se encontra sediada no Palácio dos Lilases, na Alameda das Linhas de Torres, em Lisboa.


Luís Alves Carpinteiro | Cabo Não

sexta-feira, 20 de janeiro de 2023

O POMBALISMO E A REVIRADEIRA: UMA CISÃO POLÍTICA E ICONOLÓGICA?


É tradicionalmente denominado como “Viradeira” o período inicial do reinado de Dona Maria I, durante o qual se procede à exoneração da estrutura de poder e rede clientelar do Marquês de Pombal e à reversão das políticas do Pombalismo. A reacção anti-pombalina é desencadeada logo após a aclamação de Dona Maria I, com as primeiras medidas a serem tomadas sob a égide do juiz desembargador José Ricalde Pereira de Castro a 13 de Março de 1777. Dona Maria I nunca perdoara a Pombal a perseguição que movera ao clero e à alta nobreza, particularmente a brutal execução pública dos Távoras. Os efeitos mais imediatos são a quebra do controlo estatal sobre sectores da economia, a extinção de monopólios mercantis e a retoma da influência da Igreja e da alta nobreza sobre o Estado. Mas será que esta cisão política também se refletiu na retratística das figuras do poder?


1. Retratos de Pombal e João VI, de van Loo e de Sequeira


O momento histórico da Reviradeira é ainda relevante quando a 10 de Fevereiro de 1792 o príncipe D. João é nomeado regente devido à doença mental da rainha. Urgia criar novas formas de representação para a promoção da imagem do futuro rei D. João VI. No entanto, tal não se verifica de imediato, como fica patente no retrato do príncipe regente por Domingos Sequeira (1802). Neste caso particular, sendo evidentes os paralelos entre a representação de Pombal por van Loo e a do príncipe regente por Sequeira, não deveria D. João considerar indigno fazer-se representar como um mero valido? Ou estaremos perante o caso de um poderoso valido a ser representado como um rei?


2. O Marquês de Pombal iluminando e reconstruindo Lisboa (van Loo; 1766)


As origens relativamente humildes de Sebastião José de Carvalho e Melo podem chocar com esta representação sumptuosa (Ilustração 2) que apenas faz sentido considerando o poder que o mesmo acumulou em vida. Foi um self-made man sem escrúpulos no contexto de rigidez social do Antigo Regime. Conde de Oeiras em 1759, Marquês de Pombal em 1769, D. José bafejou de títulos e honrarias o seu mais importante ministro. O pintor Louis-Michel van Loo, que serviu na corte espanhola, ficou conhecido pelos seus retratos de aparato de monarcas e nobres, como o retrato que produziu da família real borbónica em 1743 (Ilustração 4)

O retrato de Pombal segue esta tradição (apesar das origens de baixa nobreza do retratado) e foi realizado a duas mãos por van Loo e Claude Joseph Vernet, ilustre pintor de paisagens da época que foi responsável pelos fundos marinhos.

Louis-Michel van Loo ficou encarregue do retrato em si, que levou a cabo com base em esboços enviados a partir de Lisboa por Joaquim António Padrão e o seu discípulo João Silvério Carpinetti (Ilustração 3).


3. Gravura de Padrão e Carpinetti (1762)


A encomenda deveu-se a dois abastados comerciantes beneficiados directamente pelas políticas do Pombalismo, o inglês Gerard Devisme e o suíço David Purry, como forma de agradecimento e elogio à obra do “déspota iluminado”.

O retrato que van Loo lhe dedica, com o nome “O Marquês de Pombal iluminando e reconstruindo Lisboa” é pleno de simbolismos políticos e económicos. O título sugere a evocação de Pombal com um déspota esclarecido, que melhora a sociedade com as suas reformas, baseadas na razão e no Iluminismo. Nele podemos observar um líder progressista e com obra realizada, rodeado de objectos que invocam simultaneamente a reconstrução de Lisboa após o Terramoto de 1755 e o seu imenso poder, advindo das funções desempenhadas como secretário de Estado do Reino de D. José.

As suas vestes aristocráticas denunciam as origens nobres e o estatuto social elevado do retratado. A sua postura corporal é reminiscente de uma tradição traçável ao longo da carreira de van Loo: respeita a regra dos terços, aparecendo Pombal numa posição ampla e desafogada com as pernas estendidas e a mão esquerda a apontar o vasto panorama que se vislumbra nas suas costas.


4. A Família de Filipe V (van Loo; 1743)


O patamar imaginário onde a cena toma lugar está posicionado no centro do rio Tejo, com uma paisagem aproximada àquela que na contemporaneidade um automobilista veria a partir da Ponte 25 de Abril. Trata-se do estuário do rio Tejo, com um vai e vem frenético de barcos e mercadorias no rio (e com eles a prosperidade do reino) e a Lisboa reconstruída por Pombal nas margens.

Com a mão esquerda, o retratado dirige o olhar do espectador para a barra do Tejo, de onde afluem as riquezas do reino em forma de mercadorias (ouro, diamantes, vinho, entre outros) e onde se localiza o seu próprio feudo, o condado de Oeiras.

Os objectos distribuídos pela cena aludem às reformas pombalinas. Na mesa, O rei D. José vê-se “miniaturizado” perante o seu todo-poderoso ministro, numa maqueta da sua estátua equestre na Praça do Comércio. As figuras alegóricas que rodeiam a estátua de D. José I, o comércio, a arte e a indústria, simbolizam estas reformas. Estamos perante o retrato de um quase-rei e de uma das pinturas de maior fôlego da carreira de van Loo.



5. Retrato do Príncipe D. João (Sequeira; 1802)


D. João não nasceu destinado a ser rei. A morte precoce do seu irmão D. José, Príncipe do Brasil, em 1788 com apenas 27 anos e a doença mental da rainha catapultam-no para a regência em 1792. Teria de esperar mais 24 anos para finalmente iniciar o seu reinado, na sequência da morte de Dona Maria I em 1816.

Não é por obra do acaso que D. João é um dos monarcas portugueses do qual restam mais representações: houve uma procura activa pela legitimação perante o seu povo e as casas reais europeias, não apenas decorrente do contexto da sua subida ao poder mas também devido à aparente falta de carisma do governante.

Domingos Sequeira foi nomeado Primeiro Pintor de Câmara e Corte em 1802 e é neste contexto que retrata o príncipe regente. No ano seguinte acumularia o cargo de Mestre de Desenho e Pintura de Dona Carlota Joaquina, fortalecendo os seus laços com a casa real portuguesa.

Na representação de Sequeira (Ilustração 5), D. João porta as vestimentas de um aristocrata, com destaque para o gibão adornado por diversas insígnias. Não exibe no entanto qualquer atributo real, derivado de exercer o poder como regente em nome da rainha Dona Maria I, o que se torna por demais evidente pelo busto desta que o observa a partir da mesa que o ladeia pela esquerda.


6. D. Maria I como fundadora da Biblioteca Nacional (1783-1789)


Com a sua mão direita aponta as suas ferramentas do seu trabalho, os papéis, a pena e o tinteiro, numa evocação da burocracia associada à monarquia absoluta e ao exercício do poder através de decretos reais. É também possível observar vários volumes de livros, relacionados com o conhecimento e com a administração sábia e um pequeno sino, usado para chamar os seus numerosos serventes.

Como plano de fundo, Sequeira vai escolher uma paisagem imaginada que faz lembrar a Roma onde passou os seus anos de estudo e mais tarde viria a falecer, com um obelisco, uma coluna encimada por uma estátua de um guerreiro, um aqueduto e ruínas que evocam a Antiguidade Clássica.


As semelhanças com a obra de van Loo vão para além do formalismo da postura corporal, com objectos simbólicos que se repetem e uma estética que invoca o progresso e o poder. A obra de van Loo e Vermet fundou na pintura portuguesa uma estética de representação do poder difícil de contornar, que se mostrou tão relevante para a representação de estadistas como Pombal como para figuras reinantes.

Apesar da renegação da obra de Pombal, no momento da encomenda de obras de arte a dinastia de Bragança evocava a mesma semiótica de uma Europa em fervilhante mutação ideológica, em que os ideais do Iluminismo e do recrudescente Liberalismo começavam a ganhar força, com efeitos observáveis na representação dos líderes políticos. Se num primeiro momento esta estética serviu a consagração de Pombal como déspota iluminado e reconstrutor de Lisboa, durante a regência de D. João esta foi usada para legitimar o seu poder como futuro rei.


Luís Alves Carpinteiro | Cabo Não

sábado, 14 de janeiro de 2023

A SERENÍSSIMA CASA DE BRAGANÇA E O PAÇO DUCAL DE VILA VIÇOSA

 

As origens da Sereníssima Casa de Bragança remontam ao início da Segunda Dinastia, de Avis ou Joanina. O casamento entre Dom Afonso, filho natural do Rei Dom João I e Dona Brites Pereira, filha única do Condestável Dom Nuno Álvares Pereira, funda uma casa poderosa e de primeiríssima nobreza, unidos pelo sangue à família real. Os senhores desta Casa seriam Duques de Bragança, de Barcelos e de Guimarães, Marqueses de Valença e de Vila Viçosa, Condes de Ourém, Arraiolos, Neiva, Faro, Faria e Penafiel, e Senhores de Monforte, Alegrete, Vila do Conde, Braga, Penela, Alter do Chão e Ilha do Corvo; no final do século XV detinham 50 vilas, cidades e castelos, e mais de um milhar de pequenas povoações de norte a sul do país.


Estátua equestre de D. João IV, rei de Portugal

As doações de terras do Rei e do Condestável formam o património inicial da Casa de Bragança, incluindo Vila Viçosa. O lema da família "Depois de Nós Vós" é simbólico do poderio que esta família granjeia nos assuntos do reino logo desde a sua génese. O Ducado de Bragança é finalmente criado quando o Príncipe Regente D. Pedro, 1º Duque de Coimbra, atribui ao seu meio-irmão D. Afonso, Conde de Barcelos, o título de Duque de Bragança a 30 de Dezembro de 1442. O sucessor de D. Afonso, D. Fernando I, é premiado pelas suas façanhas militares com o cargo de Governador de Ceuta e Marquês de Vila Viçosa, nascendo a relação com esta terra alentejana.



Vista aérea do Paço Ducal de Vila Viçosa (Fonte: SIPA)


A influência da Casa de Bragança decaiu durante o reinado de Dom João II. Dom Fernando II foi acusado de traição e executado às ordens do Príncipe Perfeito em 1483, procedendo-se ao confisco de bens, títulos e terras. Mas a sua proeminência foi restabelecida com a subida ao trono de D. Manuel I mediante um juramento de lealdade à Coroa. Será com Dom Jaime I, quarto Duque de Bragança, que a família estabelece definitivamente o seu centro de poder em Vila Viçosa. Por outro lado, Dom Jaime é condenado a financiar e a liderar a conquista de Azamor (1513), após ter encomendado o assassinato da sua primeira esposa Leonor de Guzmán por suspeitas de infidelidade.


Fresco relativo à conquista de Azamor, no Paço Ducal de Vila Viçosa (Fonte: Foto do autor)


Ao reapossar-se das terras previamente confiscadas, Dom Jaime I inicia em 1501 a edificação de uma sede ducal em Vila Viçosa. São deste período o claustro, a capela e as salas de armaria. Quando o seu filho e sucessor, o humanista Dom Teodósio, herda o Paço considera-o "chãmente obrado" e que tinha "desconversáveis serventias".


Será com este mecenas do Renascimento português que o Paço Ducal ganhará imponência. A ele se deve a bela fachada ao gosto italiano e com 110 metros de comprimento, a fazer lembrar o Palácio Rucellai de Leon Battista Alberti, referência incontornável do Primeiro Renascimento. Os dois primeiros pisos foram concebidos durante a campanha de obras que antecipou o casamento do Infante D. Duarte (filho de D. Manuel I) e Isabel de Bragança (irmã de D. Teodósio) em 1537, quando entre outros convidados receberam a Família Real. É também neste período que floresce uma notável Escola de Música sob a égide dos Duques de Bragança.


Pormenor da fachada principal

Palácio Rucellai em Florença (c. 1460)


A Casa de Bragança subiria ao trono somente em 1640, no contexto da Restauração da Independência face a Espanha, quando o oitavo Duque de Bragança é coroado como Dom João IV. O Paço Ducal de Vila Viçosa passará assim a ser uma entre muitas residências reais espalhadas pelo país, usada primariamente como casa de veraneio, terreno agrícola e para a caça.


O Paço Ducal voltará a ter um momento áureo no reinado de João V, aquando dos casamentos duplos entre as casas reais portuguesa e espanhola, episódio conhecimento como "A Troca das Princesas". Novas campanhas de obras vão dotar o Palácio de melhorias no andar nobre, na cozinha e na capela.


Porta manuelina simbolizando o lema "Depois de Nós Vós". Fonte: Foto do autor


Em meados do século XIX, as até então esporádicas visitas da Família Real tornam-se mais frequentes, sendo o Paço alterado sucessivamente nos reinados de Dom Luís e Dom Carlos, para melhor receber a família e a larga comitiva que os acompanhava durante as suas excursões.


Com a Implantação da República o Paço Ducal de Vila Viçosa encerra as portas, que apenas serão reabertas na década de 1940, já no seguimento da criação da Fundação da Casa de Bragança, por vontade expressa em testamento de Dom Manuel II.


O ramo brasileiro da Casa de Bragança reinaria o Brasil pós-colonial desde a sua independência em 1822 até 1889, aquando da abolição da monarquia naquele país. Durante este período decorreria o fim da escravatura no Brasil (com a Lei Áurea de 13 de Maio de 1888), bem como um crescimento económico e desenvolvimento territorial.


Luís Alves Carpinteiro | Cabo Não


sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

A HISTÓRIA POR DETRÁS DE "VERSAILLES"


O britânico George Blagden na pele do Rei-Sol Luís XIV

Versailles é uma série histórica de três temporadas, centrada na construção do Palácio de Versalhes e no reinado do Rei-Sol Luís XIV (r. 1643-1715). Apesar de falada em inglês para apelar ao grande público, a série é uma produção francesa, mantendo-se até à data como a mais dispendiosa a sair desse país. O investimento fica patente nas localizações em vários palácios franceses (incluindo em cenas-chave, a própria Versalhes) e nos vestuários, feitos por costureiros profissionais segundo preceitos da época. Neste artigo abordamos o fundo histórico da série e a realidade dos seus personagens, com enfoque particular no Caso dos Venenos, o maior escândalo político do reinado de Luís XIV, retratado na primeira e segunda temporadas.


A História é a seguinte: O ano é 1667. Com o terror das Frondas ainda presente, Luís XIV decide deslocar o centro do poder para fora de Paris e converter o antigo pavilhão de caça do seu pai numa das mais opulentas residências reais da Europa. A periférica vila de Versalhes vai servir de berço para um dos mais ambiciosos projectos de poder até então concebidos: O Absolutismo Régio. 


"A new France will be born and this palace will be her mother" (S1; Ep1)


O pano de fundo da construção do Palácio de Versalhes não é apenas um espaço físico para o desenrolar da narrativa, formando antes um verdadeiro espaço psicológico: em construção está a sociedade de corte do Antigo Regime, com o monarca absoluto no seu epicentroOfuscada pelo brilho do Rei-Sol está uma prisão dourada concebida para hospedar uma nobreza domesticada com luxo e luxúria, entretenimento e alienação, reduzindo a conflitualidade política do reino ao mínimo.


O uso de Versalhes como cenário para a totalidade da série é uma liberdade criativa que se compreende, dada a sua força como elemento narrativo e a linguagem visual que nos transporta para a época: no entanto, o Palácio de Versalles só se tornou residência oficial do Rei-Sol mais tarde, a partir de 1682, e tudo indica que antes disso o monarca apenas o tenha ocupado por breves períodos.


Luís XIV e a sua família representados numa cena mitológica, numa pintura de Jean Nocret


Ao longo das duas primeiras temporadas acompanhamos o ficcional chefe da polícia Fabien Marchal, que investiga uma sequência de misteriosos envenenamentos, que assombram o Palácio de Versalhes e os seus nobres residentes. Este enredo vai culminar no final da segunda temporada, com o desvendar do Caso dos Venenos, um escândalo político bem real que abalou a sociedade francesa da época, protagonizado na série pela Marquesa de Montespan, pelo padre Éttiene Guibourg e pela cartomante Madame Agathe (inspirada na histórica Catherine Monvoisin, também conhecida como "La Voisin").


A maior consequência política deste escândalo foi a queda em desgraça da Marquesa de Montespan, outrora a toda-poderosa amante oficial do rei de França (maîtresse-en-titre), considerada por muitos como "a verdadeira rainha de França". Ao contrário do que a linha temporal da série poderá sugerir, a relação entre Luís XIV e a Marquesa de Montespan estendeu-se por mais de uma década e gerou sete filhos, todos eles legitimados pelo rei com excepção de Luísa Francisca de Bourbon (n. 1669), que morreu aos dois anos de idade.


Françoise-Athénaïs de Rochechouart, Marquesa de Montespan, representada por Anna Brewster


Caso dos Venenos: Um escândalo político na corte de Luís XIV


Cenas retratadas na série, como a missa negra celebrada sobre o corpo nu da Montespan ou a morte na fogueira de Madame Agathe, encontram eco em acontecimentos históricos verídicos: suspeita-se que Montespan terá efectivamente participado por várias ocasiões nestes rituais e a sentença de morte de "La Voisin" foi levada a cabo em 1680O caso começa em finais da década de 1670 quando um número crescente de envenenamentos no seio da aristocracia francesa alarma as autoridades. Paralelamente, muitos padres denunciavam ouvir com cada vez mais frequência relatos destes crimes nos seus confessionários:


"A moda dos venenos veio de Itália. Cicuta, beladona, cantárida, óleo de vitríolo, e, sem qualquer dúvida, arsénico são utilizados por quem se quer livrar de um pai, de um irmão, de um marido demasiado velho ou impotente, de um amante que está a estorvar. Uma moda que se tornou um verdadeiro flagelo." Éric Le Nabour


Em 1676 a Madame de Brinvilliers é sentenciada à morte depois de envenenar o pai e dois irmãos de forma a se apropriar de uma herança familiar. Seguem-se as prisões e interrogatórios de Magdeleine de La Grange em 1677 e de Marie Bosse em 1679, que revelam uma teia de cartomantes distribuidoras de venenos, "mais de quatrocentas" segundo uma das testemunhas, com ligações nas mais altas esferas da corte.


O personagem Fabien Marchal é vagamente inspirado em La Reynie, chefe da polícia de Luís XIV


O eleito para liderar a investigação é Gabriel-Nicolas de La Reynie, um brilhante e implacável Tenente Geral de Polícia a quem é muitas vezes atribuída a criação da primeira força policial moderna. Simultaneamente é formado no Arsenal de Paris um tribunal especial, que ficará conhecido para a posteridade como "Tribunal contra os heréticos e envenenadores" ou chambre ardente.


Era apenas uma questão de tempo até a investigação levar as autoridades até Catherine Monvoisin, uma parteira suspeita de encabeçar a organização criminosa. "La Voisin" recebera, segundo a própria, os seus dotes psíquicos aos nove anos, mas apenas iniciara a sua comercialização após a morte do marido, que a deixara na pobreza. Os seus serviços de cartomancia e adivinhação, fabrico de "filtros de amor" e amiúde venenos, rapidamente a tornaram uma figura popular na sociedade parisiense. Para alguns clientes especiais poderia mesmo organizar missas negras, com recurso a associados como o padre excomungado Éttiene Guibourg, que podiam incluir o sacrifício ritual de crianças, que acreditavam aumentar a eficiência dos seus pedidos ao senhor das trevas.


Retrato da infame "La Voisin", segurado por um demónio com asas (1680)


A polícia toma partido das rivalidades entre as cartomantes para extrair delas uma lista de ilustres clientes: nela figuravam as irmãs Olympia e Marie Anne Mancini, Condessa de Soissons e Marquesa de Bouillon respectivamente, François Henri de Montemorency, Duque de Luxemburgo e mais importantemente, a maîtresse-en-titre Marquesa de Montespan.

 

As consultas de Montespan com Catherine Monvoisin remontavam pelo menos a 1667, quando esta era apenas aia de Henrietta de Inglaterra (cunhada do rei) e ambicionava roubar o afecto de Luís à maîtresse anterior, Louise de La Vallière. Na série, estas consultas intensificam-se à medida que Montespan vai perdendo o favor do rei, procurando desta forma ganhar vantagem sobre potenciais rivais mais jovens e atraentes. Na realidade, a amante real recorrera à cartomante ainda antes do início da sua relação com Luís XIV, para obter as poções afrodisíacas que administrava ao rei sem conhecimento do próprio.


A revelação mais chocante foi a participação da Marquesa de Montespan em missas negras nas quais, pelo menos numa ocasião, o seu corpo nu teria servido de altar humano para o celebrante Éttiene Guibourg. O momento central destes cultos demoníacos seria o sacrifício ritual de crianças, raptadas por "La Voisin", tomando partido do seu ofício como parteira. Em 1927, o ocultista  britânico Montague Summers produziu uma descrição imaginada de uma destas missas:


A missa negra celebrada pelo padre Guibourg, como ilustrada em The Guibourg Mass (1903)


"Uma longa mortalha foi estendida sobre o altar, e sobre ela se deitou a amante do rei, em estado de completa nudez. Seis velas negras foram acesas, o celebrante vestiu uma casula com caracteres esotéricos bordados em prata, a patena e o cálice de ouro foram colocados sobre o ventre nu do altar vivo (...) Tudo estava em silêncio, excepto pelo murmúrio grave e monótono da liturgia blasfema (...) Uma acólita avançou trazendo uma criança nos braços. A criança foi erguida sobre o altar, um corte profundo no pescoço, um choro abafado, gotas quentes caíram para o cálice e sobre a figura branca abaixo. O cadáver foi entregue a La Voisin, que o atirou com indiferença para dentro de um forno feito para o efeito, que brilhava incandescente com ferocidade." 


Ao que parece, o rei tudo fez para proteger a sua favorita e evitou até ao fim que esta fosse julgada, mesmo depois de a ter trocado pela Marquesa de Maintenon em 1680 e mais surpreendentemente, perante acusações de uma possível tentativa de regícidio, em que Montespan movida por cíumes teria atentado contra a vida do rei e da Duquesa de Fontanges, uma jovem com quem o monarca teve um fugaz relacionamento.


No dia 22 de Fevereiro de 1680 o Caso dos Venenos era levado ao seu desenlace macabro com a morte na fogueira de Catherine Monvoisin na Place de Grève. No seu livro Sex with Kings (2005) Eleanor Herman afirma que a polícia francesa desenterrou vestígios de 2500 corpos de bebés nas imediações da casa da feiticeira, no entanto isto não passa de um boato.


A série Versailles está disponível na Netflix Portugal


Logo após a execução, Marguerite Monvoisin reiteraria as acusações da sua mãe contra a Marquesa de Montespan, que nunca viria a ser julgada. A antiga favorita seria relegada a um pequeno apartamento no Palácio de Versalhes, nunca recuperando o protagonismo de outros tempos. Em 1691, retirar-se-ia definitivamente da corte para o convento carmelita de Filles de Saint-Joseph. Morreria em 1707 nas termas de Bourbon-l'Archambault, para onde se deslocara para receber tratamento. Perante a notícia da sua morte, o rei proibiu os seus filhos conjuntos de lhe prestarem luto.


Ao longo dos seus três anos de existência, a chambre ardente levaria a cabo 210 sessões, dando ordem de prisão por 319 vezes e mandando executar 36 pessoas. Agastado pelos custos políticos do escândalo, seria o próprio monarca a promover a dissolução do tribunal em 1682, com os remanescentes suspeitos a serem encarcerados por lettre de cachet. Quanto aos nobres cuja proximidade do rei deixou intocados pela mão da justiça, o Tenente Geral La Reynie teve isto a dizer: "a enormidade dos seus crimes provou ser a sua salvaguarda".


     

Luís Alves Carpinteiro | Cabo Não

quarta-feira, 29 de janeiro de 2020

REVOLUÇÃO MILITAR NA IDADE MODERNA

O conceito de "revolução militar" foi introduzido pelo historiador Michael Roberts na década de 1950, para descrever uma transformação disruptiva das instituições militares europeias quanto às suas tácticas, treino e doutrina, ocorrida entre os séculos XV e XVII. Estas mudanças radicais são personificadas  principalmente pelas reformas militares empreendidas pelos impérios holandês e sueco.

Roberts afirma que a revolução militar é centrada na adopção das tácticas lineares de infantaria e no aperfeiçoamento das armas de fogo. É igualmente neste período que os contingentes militares vão crescer exponencialmente e estabelecer pela primeira vez forças permanentes.

Por outro lado, Geoffrey Parker destaca o desenvolvimento de fortalezas abaluartadas em trace italienne, surgidas em finais do século XV no contexto das Guerras Italianas (1494-1559). Os bastiões em trace italienne permitiram eliminar os pontos mortos e proteger os sitiados de fogo directo, ao mesmo tempo que criavam pontos estratégicos para a artilharia defensiva.

Parker critica o argumento das tácticas lineares de Roberts, salientando o exemplo dos terços espanhóis que obtêm uma grande vitória na Batalha de Nordlingen (1634) contra os suecos. Além da importância dos terços, destaca o que denomina como "revolução naval", onde se desenvolvem navios-de-linha possuindo canhões ao longo dos seus flancos, que permitem atacar o inimigo à distância e, desta forma, evitar a abordagem directa.


Rocroi, el último tercio (Ferrer Dalmau)
As transformações tecnológicas, estratégicas, logísticas e doutrinárias são plenamente implementadas durante o período bélico da Guerra dos Trinta Anos (1618-1648). É durante este período que as fortificações do traçado italiano vão dominar o sistema defensivo das potências europeias e inutilizar o confronto directo. A guerra converte-se numa série de longos cercos o que aumenta, consequentemente, a duração dos conflitos.

O estados passam a deter instituições militares centralizadas, sendo obrigados a fornecer todo um leque de mantimentos para contingentes militares cada vez maiores. Por conseguinte, e procurando prolongar o esforço bélico até obter um resultado favorável, as potências europeias vão contrair dívidas exorbitantes, requisitar auxílio financeiro dos seus comandantes e permitir o saque total de certas províncias e cidades, com os exemplos mais conhecidos do Saque de Roma (1527) e a Fúria Espanhola em Antuérpia (1576).


Fortaleza de Peniche, exemplo português de uma fortaleza em traçado italiano


O aumento dos contingentes militares trouxe consigo a frenética procura de novos recrutas, especialmente a contratação de soldados mais experientes que já detinham um conhecimento profundo da guerra. É o nascimento do militar profissional, personificada em indivíduos como Robert Monro que vagueavam o continente europeu à procura de novas oportunidades para servir em conflitos armados.

Geoffrey Parker sublinha, igualmente, a existência de "exércitos Arca de Noé" que detinham soldados do mais variado estrato social, desde criminosos, milícias locais, mercenários, vassalos e elementos da nobreza.

O ideal de cavalaria medieval deixa de ser venerado como havia sido antes, passando a arte militar romana a ser tida em consideração e reverência pela aristocracia francesa e italiana. Thomas Arnold refere a replicação de técnicas navais, por parte da República de Veneza na sua oposição ao Império Otomano.

O predomínio da infantaria neste período está na origem do afastamento das unidades de cavalaria que não são totalmente abandonadas mas sim incorporadas em divisões mais ligeiras. Apesar da cavalaria oferecer maior mobilidade que a infantaria, revela-se um alvo fácil para armas de fogo com aperfeiçoada capacidade de fogo.

No final do período da Idade Moderna, a forma de fazer a guerra encontrava-se totalmente revolucionada. Criavam-se novos regulamentos e jurisdições para a manutenção e funcionamento dos contingentes militares e a mentalidade militar alterara-se dramaticamente. Onde antigamente existia um só protagonista no campo de batalha, agora passava a existir uma correlação de forças, quebrando definitivamente com o modus belandi medieval.


FAC

sábado, 1 de dezembro de 2018

D. FILIPA DE VILHENA


Hoje dia 1 de Dezembro, celebramos a Restauração da Independência de Portugal face a Espanha e uma das personagens heróicas femininas da História de Portugal, D. Filipa de Vilhena, Marquesa de Atouguia.


Filipa de Vilhena foi uma nobre portuguesa que se tornou um símbolo do patriotismo português durante a Restauração da Independência, imortalizada na peça homónima de Almeida Garrett.

Nascida da união entre D. Jerónimo Coutinho e D. Luísa de Faro, o seu pai foi conselheiro de Estado, Presidente do Desembargo do Paço e nomeado vice-rei da Índia em 1619, cargo que recusou. Foi casada com o 5º conde de Atouguia, D. Luís de Ataíde, que morreu, deixando-a com dois filhos: D. Jerónimo de Atouguia e D. Francisco Coutinho.

Tomando conhecimento dos preparativos para a revolução de 1 de Dezembro de 1640, instigou os seus filhos a aderir e a partilharem "os perigos de seus irmãos em fidalguia e em nacionalidade". Na madrugada de 1 de Dezembro, por ser viúva, cingiu ela própria as armas aos seus dois filhos, instando-os a combater pela pátria e "dizendo-lhes que não voltassem senão honrados pelos louros da vitória".

Como recompensa pelos seus serviços à pátria, Filipa recebeu da nova rainha D. Luísa de Gusmão o cargo de camareira-mor e de aia do príncipe D. Afonso, o futuro rei de Portugal, D. Afonso VI. Filipa de Vilhena morre em Lisboa no dia 1 de Abril de 1651 e é sepultada na Igreja de Santos-o-Velho.

D. Filipa de Vilhena armando os filhos cavaleiros de Vieira Portuense (1801)


Na cultura popular

Em 1801, o Visconde de Anadia encomenda a Vieira Portuense (1765-1805) uma grande pintura histórica para comemorar a paz com a Espanha e glorificar o Príncipe Regente, D. João VI. A boa recepção da pintura granjeia a Vieira reconhecimento internacional e a nomeação real de primeiro pintor da Real Câmara e Corte. Na opinião de Paulo Varela Gomes: "o que é especialmente interessante no quadro é o compromisso pictórico entre as correntes proto-românticas ainda ligadas ao Barroco e a retórico de gestos que deriva do Rococó e, finalmente os esquemas compositivos neoclássicos".

Esta obra pertenceu a uma colecção particular até 2007, altura em que se perdeu num incêndio em casa do proprietário. A cena foi igualmente tema de uma aguarela de Roque Gameiro e da peça de teatro de Almeida Garrett "D. Filipa de Vilhena", estreada no Teatro do Salitre no dia 30 de Maio de 1840.


LAC


terça-feira, 27 de março de 2018

FORTE DE NOSSA SENHORA DA GRAÇA


Modelo 3D da GEODRONE.

Altaneiro sobre a cidade de Elvas, ergue-se imponente o Forte de Nossa Senhora da Graça, considerado por vários historiadores como o maior feito da arquitetura militar portuguesa e integrado no maior sistema de fortificações abaluartadas de todo o mundo. 

Foi construído num dos pontos cimeiros da região, o Monte da Graça, do qual herda o nome. A primeira pedra foi assente em 1763 e a última cerca de três décadas mais tarde em 1792. Estima-se que seis mil operários tenham assistido na sua edificação, cujo custo foi muito elevado em vidas humanas. Um relato de 1764 dá conta da dureza dos trabalhos e dos frequentes acidentes:
"experimentaram-se quatro minas, mas houve cinco desgraças de pernas e braços quebrados e logo um morreu feito em pedaços".
A preponderância estratégica do Monte da Graça evidenciou-se no contexto da Guerra da Restauração. Durante o cerco que antecedeu a Batalha das Linha de Elvas (1659), o monte foi tomado pelos espanhóis que lá instalaram as suas peças de artilharia e bombardearam impiedosamente a cidade. A situação repetiu-se em 1762 durante a Guerra dos Sete Anos, quando Elvas foi mais uma vez sitiada.

A cidade-quartel de Elvas era cognominada na época de "Princesa da Fronteira" e de "Chave do Reino". Isto devia-se a que quem quisesse subjugar Portugal, tomando Elvas tinha o caminho aberto para Lisboa, a cabeça do Reino. O rei Dom José foi quem acordou para a necessidade de reforçar este trecho da fronteira, que em alturas de invasão era invariavelmente assediado.  

Em 1763, perante a iminência de uma invasão da recentemente formada aliança entre franceses e espanhóis, o Marquês de Pombal convida o  Conde de Lippe para organizar a defesa do reino. A administração militar de Lippe encetará  um extenso programa de reparação e de edificação de novas fortificações, entre as quais o Forte da Graça.

"Guilherme, Conde de Schaumburgo-Lippe" (Johann Georg Ziesenis, circa 1770)

Após o delineamento da gigantesca obra, o Engenheiro Pierre Robert de Bassenond foi encarregue da sua execução. A primeira planta seria desenhada por Luís Gomes de Carvalho e a direção dos trabalhos atribuída ao Capitão Engenheiro Etiénne. Etiénne e Lippe abandonarão o projeto em 1764, recomendando o Coronel Valleré que prosseguirá com a obra.

Valleré realizará alterações vitais no projeto, que conferirão à fortaleza um "grau de sofisticação defensiva inexcedível". O zelo de Valleré foi ao ponto de "esgotar tudo o que de melhor havia na arquitetura militar daquela altura" e ainda "inovar a vários níveis", como ficou patente nas diversas particularidades que dão ao Forte da Graça um carácter único em todo o mundo: uma notável simetria das formas geométricas; uma utilização inovadora dos espaços subterrâneos; uma modelação elevada que impede a visibilidade aos ofensores e ainda o emprego do revolucionário "2º Sistema de Pagan" que se caracterizava pelos "ângulos obtusos e linha de defesa rasante, sem flancos secundários".

A sua geometria em formato de "estrela" foi concebida para enfrentar uma nova forma de fazer guerra, possibilitada pelos grandes desenvolvimentos na artilharia móvel registados nesta época. As várias etapas de melhoramento tornaram a fortaleza praticamente inexpugnável. Não tardaria a ser posta à prova, resistindo ao assédio dos espanhóis na Guerra das Laranjas (1801) e ao bombardeamento infligido por Soult no contexto da Guerra Peninsular (1811).

No âmbito das disputas entre liberais e absolutistas foi convertido em presídio político, estatuto que manteve até tão recentemente quanto 1975. Atualmente, o Forte de Nossa Senhora da Graça integra o conjunto "Cidade-quartel fronteiriça de Elvas e suas fortificações", considerado Património Mundial da Humanidade pela UNESCO em 2012. 


Imagem aérea do Forte de Nossa Senhora da Graça. Retirada de www.starforts.com





Luís Alves Carpinteiro | Cabo Não 

sábado, 9 de dezembro de 2017

PINA MANIQUE E A INTENDÊNCIA GERAL DA POLÍCIA


Em 1760 é fundada em Lisboa a Intendência Geral da Polícia da Corte e do Reino. O Intendente Geral era um autêntico Ministro da Polícia, tendo a seu cargo a chefia da polícia e da segurança pública em todo o território do Reino, com poderes alargados nos campos judicial, policial e até, de assistência social.


"Alegoria ao Marquês de Pombal"; Fonte: Biblioteca Nacional


O vulto maior desta organização foi sem sombra para dúvida o todo poderoso Intendente Diogo Inácio de Pina Manique, que ocupou o cargo entre 1777 e 1805. Pina Manique, um dos homens fortes do Marquês de Pombal, apenas ascendeu ao cargo máximo da polícia após a queda do último. A sua acção como Intendente durante o reinado de Maria Pia focou-se em aplacar as ideias liberais veiculadas pela Revolução Francesa, nomeadamente através da proibição da circulação de certos livros e da perseguição de intelectuais iluministas, vezes por demais associados a lojas maçónicas.

Destaca-se no serviço social em 1780 ao fundar a Real Casa Pia de Lisboa, que à época funcionava no Castelo de São Jorge. Esta casa de acolhimento é criada com o propósito de educar os órfãos e integrar pessoas em situação de indigência, de modo a evitar a queda daqueles no crime e na marginalidade. Mais tarde toma a iniciativa de erigir novos cemitérios: com condições aperfeiçoadas de salubridade e com o intuito adicional de lançar estimativas demográficas de população e fiscalizar óbitos que se suspeitasse de morte violenta.


"Alegoria da Fundação da Casa Pia" de Domingos Sequeira, com Pina Manique ao centro.


Em 1801, por sugestão de Pina Manique, o Príncipe Regente D. João cria em Lisboa o primeiro corpo policial urbano digno desse nome, decalcado da Gendarmerie francesa que existia desde 1791. Chamar-se-ia Guarda Real da Polícia, vulgarmente considerada como o antepassado da actual Guarda Nacional Republicana. São estabelecidos 15 comissariados para a cidade de Lisboa. Força militar armada, patrulha as ruas a pé ou montada a cavalo. São instaurados corpos semelhantes no Porto e no Rio de Janeiro.

Em 1803 Pina Manique indispõe-se com o general francês Lannes, pelo que Napoleão exige a sua demissão ao Príncipe Regente que acaba por ceder. Com o alvor da Revolução Liberal a Intendência é declarada anti-constitucional, logo em 1820. Sobrevive, de resto, até 1833 data em que é definitivamente debandada.


Luís Alves Carpinteiro | Cabo Não

terça-feira, 5 de setembro de 2017

GUERRA DAS LARANJAS


A Guerra das Laranjas, decorrida entre Maio e Junho de 1801, foi uma das numerosas guerras que opôs portugueses e espanhóis nas suas raias. Embora periférica relativamente ao epicentro do conflito, é vulgarmente inserida na “Guerra da Segunda Coligação” que opôs várias potências europeias à França Revolucionária na fase final da sua revolução. Em 1793, o rei de França Luís XVI é executado no decurso do processo revolucionário que prosseguia no seu país. A este ato segue-se um escalar das relações diplomáticas e são tomadas providências militares por parte de várias nações europeias, receosas pela propagação do espírito revolucionário para os seus países. Inglaterra torna-se a principal opositora da França Revolucionária e a ela juntam-se Espanha e Portugal, que é arrastado para o conflito devido à sua longa aliança com a Inglaterra. O Príncipe Regente D. João envia uma unidade auxiliar, liderada pelo tenente-coronel John Forbes Skellater, com o objectivo de reforçar o exército espanhol e invadir a França através dos Pirenéus. Esta incursão militar, que ficará para a história como “Campanha do Rossilhão”, teve início no ano de 1793. Inicialmente produziu resultados favoráveis para a coligação luso-hispânica que captura diversas praças, nomeadamente Ceret e Villelongue. No entanto durante o inverno de 1793 as tropas aliadas são desbaratadas e perdem paulatinamente todo o terreno conquistado. Na primavera de 1794 as tropas francesas forçam a retirada das tropas aliadas para a Catalunha onde ocupam praças espanholas. A 22 de Julho de 1795, a coroa espanhola assina bilateralmente com a França o Tratado de Basileia; os representantes portugueses são excluídos deixando o Portugal efetivamente fora das conversações de paz. Na sequência do tratado todas as hostilidades são cessadas e a França devolve os territórios ocupados na Catalunha. A Portugal são impostas pesadas condições, entre as quais a cessação da aliança inglesa e perdas territoriais nas colónias, pelo que mantêm o estado de guerra com a França, sem nunca negociar um tratado de paz. A 18 de Agosto de 1796, o Tratado de Santo Ildefonso firma uma aliança militar entre franceses e espanhóis; e segundo a suspeita de Rodrigo de Sousa Coutinho, um acordo secreto entre as duas potências para a conquista e partilha do território português. Reuniam-se as condições para o eclodir do conflito.


Manuel Godoy como vencedor da Guerra das Laranjas, por Francisco de Goya

A Guerra das Laranjas foi um conflito de escala imperial com campos de batalha separados por milhares de quilómetros. No final de Maio de 1801, território português é invadido pelo Alentejo, com a grande massa dos conflitos a ocorrerem nesta região. Num espaço de dois dias, através de movimentações rápidas e de divisões de unidades, o exército espanhol toma várias praças alentejanas, nomeadamente Juromenha, Arronches e Olivença, que capitulam sem oferecer resistência. Campo Maior suportaria um penoso cerco até à capitulação a 7 de Junho. Elvas por ser dotada de espessas muralhas e numerosa guarnição nunca viria a cair. A operação relâmpago levada a cabo pelos Espanhóis deixou as forças portuguesas sem reacção. Na noite de 29 de Maio, reúne-se em Portalegre um conselho de guerra presidido pelo Duque de Lafões. Reconhece-se a impossibilidade de manter uma linha de defesa ao longo da raia pelo que é deliberado um recuo em direção ao Tejo. Reúne-se um outro conselho de guerra que decide concentrar o exército na área do Gavião, de modo a evitar perdas maiores. A linha defensiva é formada mas devido à falta de missões de reconhecimento passam-se dias sem que se conheça a localização das forças espanholas. Sofrendo o atrito da escassez de alimentos, o Duque de Lafões decide despachar uma pequena divisão liderada por D. José Cárcome Lobo que busca mantimentos em povoações limítrofes. Porém no decurso da missão são surpreendidos por uma vasta força espanhola, seguindo-se uma debandada até à Aldeia da Mata onde ocorre uma troca de fogo de artilharia até nova retirada das forças portuguesas. Foram também registadas escaramuças em Trás-os-Montes e no Algarve. Na região setentrional do país, sucede uma incursão militar de forças comandadas por Gomes Freire que tentam sem sucesso tomar a vila galega de Monterrey. No Algarve trocam-se disparos das margens do Guadiana. Sucede-se uma tentativa de travessia pelas hostes espanholas que são repelidas pelas portuguesas. Perante a notícia de declaração de guerra e sem instruções específicas da Coroa, o governo do Rio Grande do Sul, que tinha velhas ambições expandir o domínio até aos “limites naturais” do Rio da Prata e do Rio Uruguai, expediu dois corpos militares. Os colonos recorrem a tropas milicianas que ocupam fortins e fortalezas espanholas. Perante a tomada de várias posições, os habitantes começam a vazar as praças que são facilmente tomadas. Por sua vez os colonos espanhóis investem sobre o Forte de Coimbra em Mato Grosso. São no entanto repelidos pela artilharia portuguesa que provoca a sua retirada. As forças portuguesas contra atacam e tomam o forte de São Jorge, fixando nova fronteira no rio Apa. Enquanto o conflito durava, já o governo português tomava providências para dar início às conversações de paz. Para o efeito é despachado por Lisboa o embaixador Luís Sousa Coutinho. Houve uma tentativa de retardação das negociações por parte do marechal Godoy, que penetrava cada vez mais em território português para deste modo obter vantagem na mesa negocial. Luís Sousa Coutinho manteve-se em constante diálogo com o Príncipe Regente e do lado espanhol as negociações estavam debaixo do escrutínio atento de Napoleão Bonaparte através da pessoa do seu irmão Luciano. No dia 8 de Junho, é assinado o Tratado de Badajoz e as hostilidades cessam. Porém o tratado só é ratificado pelo Príncipe Regente alguns dias mais tarde, permitindo a operação de Gomes Freire. O tratado nunca foi aceite por Napoleão que exigia condições mais severas e pressionou a sua aliada a repudiar o acordo. Carlos IV recusou as imposições napoleónicas e não quis reiniciar o conflito. Desta forma iniciou-se uma nova ronda de negociações em Madrid, onde os intervenientes vieram a assinar o Tratado de Madrid que formaliza o fim da guerra que durava desde a campanha do Rossilhão.


LAC e FAC