sexta-feira, 20 de janeiro de 2023

O POMBALISMO E A REVIRADEIRA: UMA CISÃO POLÍTICA E ICONOLÓGICA?


É tradicionalmente denominado como “Viradeira” o período inicial do reinado de Dona Maria I, durante o qual se procede à exoneração da estrutura de poder e rede clientelar do Marquês de Pombal e à reversão das políticas do Pombalismo. A reacção anti-pombalina é desencadeada logo após a aclamação de Dona Maria I, com as primeiras medidas a serem tomadas sob a égide do juiz desembargador José Ricalde Pereira de Castro a 13 de Março de 1777. Dona Maria I nunca perdoara a Pombal a perseguição que movera ao clero e à alta nobreza, particularmente a brutal execução pública dos Távoras. Os efeitos mais imediatos são a quebra do controlo estatal sobre sectores da economia, a extinção de monopólios mercantis e a retoma da influência da Igreja e da alta nobreza sobre o Estado. Mas será que esta cisão política também se refletiu na retratística das figuras do poder?


1. Retratos de Pombal e João VI, de van Loo e de Sequeira


O momento histórico da Reviradeira é ainda relevante quando a 10 de Fevereiro de 1792 o príncipe D. João é nomeado regente devido à doença mental da rainha. Urgia criar novas formas de representação para a promoção da imagem do futuro rei D. João VI. No entanto, tal não se verifica de imediato, como fica patente no retrato do príncipe regente por Domingos Sequeira (1802). Neste caso particular, sendo evidentes os paralelos entre a representação de Pombal por van Loo e a do príncipe regente por Sequeira, não deveria D. João considerar indigno fazer-se representar como um mero valido? Ou estaremos perante o caso de um poderoso valido a ser representado como um rei?


2. O Marquês de Pombal iluminando e reconstruindo Lisboa (van Loo; 1766)


As origens relativamente humildes de Sebastião José de Carvalho e Melo podem chocar com esta representação sumptuosa (Ilustração 2) que apenas faz sentido considerando o poder que o mesmo acumulou em vida. Foi um self-made man sem escrúpulos no contexto de rigidez social do Antigo Regime. Conde de Oeiras em 1759, Marquês de Pombal em 1769, D. José bafejou de títulos e honrarias o seu mais importante ministro. O pintor Louis-Michel van Loo, que serviu na corte espanhola, ficou conhecido pelos seus retratos de aparato de monarcas e nobres, como o retrato que produziu da família real borbónica em 1743 (Ilustração 4)

O retrato de Pombal segue esta tradição (apesar das origens de baixa nobreza do retratado) e foi realizado a duas mãos por van Loo e Claude Joseph Vernet, ilustre pintor de paisagens da época que foi responsável pelos fundos marinhos.

Louis-Michel van Loo ficou encarregue do retrato em si, que levou a cabo com base em esboços enviados a partir de Lisboa por Joaquim António Padrão e o seu discípulo João Silvério Carpinetti (Ilustração 3).


3. Gravura de Padrão e Carpinetti (1762)


A encomenda deveu-se a dois abastados comerciantes beneficiados directamente pelas políticas do Pombalismo, o inglês Gerard Devisme e o suíço David Purry, como forma de agradecimento e elogio à obra do “déspota iluminado”.

O retrato que van Loo lhe dedica, com o nome “O Marquês de Pombal iluminando e reconstruindo Lisboa” é pleno de simbolismos políticos e económicos. O título sugere a evocação de Pombal com um déspota esclarecido, que melhora a sociedade com as suas reformas, baseadas na razão e no Iluminismo. Nele podemos observar um líder progressista e com obra realizada, rodeado de objectos que invocam simultaneamente a reconstrução de Lisboa após o Terramoto de 1755 e o seu imenso poder, advindo das funções desempenhadas como secretário de Estado do Reino de D. José.

As suas vestes aristocráticas denunciam as origens nobres e o estatuto social elevado do retratado. A sua postura corporal é reminiscente de uma tradição traçável ao longo da carreira de van Loo: respeita a regra dos terços, aparecendo Pombal numa posição ampla e desafogada com as pernas estendidas e a mão esquerda a apontar o vasto panorama que se vislumbra nas suas costas.


4. A Família de Filipe V (van Loo; 1743)


O patamar imaginário onde a cena toma lugar está posicionado no centro do rio Tejo, com uma paisagem aproximada àquela que na contemporaneidade um automobilista veria a partir da Ponte 25 de Abril. Trata-se do estuário do rio Tejo, com um vai e vem frenético de barcos e mercadorias no rio (e com eles a prosperidade do reino) e a Lisboa reconstruída por Pombal nas margens.

Com a mão esquerda, o retratado dirige o olhar do espectador para a barra do Tejo, de onde afluem as riquezas do reino em forma de mercadorias (ouro, diamantes, vinho, entre outros) e onde se localiza o seu próprio feudo, o condado de Oeiras.

Os objectos distribuídos pela cena aludem às reformas pombalinas. Na mesa, O rei D. José vê-se “miniaturizado” perante o seu todo-poderoso ministro, numa maqueta da sua estátua equestre na Praça do Comércio. As figuras alegóricas que rodeiam a estátua de D. José I, o comércio, a arte e a indústria, simbolizam estas reformas. Estamos perante o retrato de um quase-rei e de uma das pinturas de maior fôlego da carreira de van Loo.



5. Retrato do Príncipe D. João (Sequeira; 1802)


D. João não nasceu destinado a ser rei. A morte precoce do seu irmão D. José, Príncipe do Brasil, em 1788 com apenas 27 anos e a doença mental da rainha catapultam-no para a regência em 1792. Teria de esperar mais 24 anos para finalmente iniciar o seu reinado, na sequência da morte de Dona Maria I em 1816.

Não é por obra do acaso que D. João é um dos monarcas portugueses do qual restam mais representações: houve uma procura activa pela legitimação perante o seu povo e as casas reais europeias, não apenas decorrente do contexto da sua subida ao poder mas também devido à aparente falta de carisma do governante.

Domingos Sequeira foi nomeado Primeiro Pintor de Câmara e Corte em 1802 e é neste contexto que retrata o príncipe regente. No ano seguinte acumularia o cargo de Mestre de Desenho e Pintura de Dona Carlota Joaquina, fortalecendo os seus laços com a casa real portuguesa.

Na representação de Sequeira (Ilustração 5), D. João porta as vestimentas de um aristocrata, com destaque para o gibão adornado por diversas insígnias. Não exibe no entanto qualquer atributo real, derivado de exercer o poder como regente em nome da rainha Dona Maria I, o que se torna por demais evidente pelo busto desta que o observa a partir da mesa que o ladeia pela esquerda.


6. D. Maria I como fundadora da Biblioteca Nacional (1783-1789)


Com a sua mão direita aponta as suas ferramentas do seu trabalho, os papéis, a pena e o tinteiro, numa evocação da burocracia associada à monarquia absoluta e ao exercício do poder através de decretos reais. É também possível observar vários volumes de livros, relacionados com o conhecimento e com a administração sábia e um pequeno sino, usado para chamar os seus numerosos serventes.

Como plano de fundo, Sequeira vai escolher uma paisagem imaginada que faz lembrar a Roma onde passou os seus anos de estudo e mais tarde viria a falecer, com um obelisco, uma coluna encimada por uma estátua de um guerreiro, um aqueduto e ruínas que evocam a Antiguidade Clássica.


As semelhanças com a obra de van Loo vão para além do formalismo da postura corporal, com objectos simbólicos que se repetem e uma estética que invoca o progresso e o poder. A obra de van Loo e Vermet fundou na pintura portuguesa uma estética de representação do poder difícil de contornar, que se mostrou tão relevante para a representação de estadistas como Pombal como para figuras reinantes.

Apesar da renegação da obra de Pombal, no momento da encomenda de obras de arte a dinastia de Bragança evocava a mesma semiótica de uma Europa em fervilhante mutação ideológica, em que os ideais do Iluminismo e do recrudescente Liberalismo começavam a ganhar força, com efeitos observáveis na representação dos líderes políticos. Se num primeiro momento esta estética serviu a consagração de Pombal como déspota iluminado e reconstrutor de Lisboa, durante a regência de D. João esta foi usada para legitimar o seu poder como futuro rei.


Luís Alves Carpinteiro | Cabo Não

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