domingo, 4 de dezembro de 2022

OS DESCOBRIDORES: A ROTA DO CABO


Tradicionalmente, o ano de 1415 é apontado como início da epopeia dos Descobrimentos. A primeira armada portuguesa digna desse nome tinha sido fundada no século anterior por D. Dinis, que delegara no genovês Manuel de Pessanha a tarefa de estabelecer uma força naval que patrulhasse a orla mediterrânica portuguesa e que a mantivesse a salvo das frequentes depredações de piratas magrebinos. Sobre a égide de D. Afonso IV dar-se-ia a primeira viagem de exploração em que os marinheiros portugueses alcançaram as Canárias. Mas é no primeiro quartel do século XV, com a conquista de Ceuta e o início da exploração sistemática da costa africana pelo infante D. Henrique, que se precipita definitivamente o impulso para o movimento que hoje chamamos Descobrimentos.

O planisfério de Cantino, 1502

No ano de 1419, é oficializada a descoberta da ilha de Porto Santo, por João Gonçalves Zarco e Tristão Vaz de Teixeira, a qual no entanto se supõe que já fosse visitada pelos portugueses há pelo menos um século. Pouco faltava pois para a descoberta da ilha da Madeira, que ocorre no ano seguinte, numa expedição em que os mesmos navegadores se fizeram acompanhar por Bartolomeu Perestrelo, futuro sogro do descobridor das Américas Cristóvão Colombo.

A integralidade do actual território português seria conquistada com as duas viagens de Gonçalo Velho ao arquipélago dos Açores, em 1431 e 1432, apesar de se atribuir a Diogo de Silves a primeira visita à ilha de Santa Maria, no ano de 1427. A totalidade das nove ilhas só seria porém descoberta bem mais tarde em 1452, com duas últimas Flores e Corvo a serem descobertas por Diogo de Teive, que foi até lá guiado pelo voo das aves.


Moeda de escudo comemorativa da travessia do Cabo da Boa Esperança (1988)


Durante este tempo a navegação à vista (ou de cabotagem) da costa ocidental africana não cessara e não tardaria a dar frutos. Após uma primeira intenta em que se vira impedido de prosseguir devido à intempérie, Gil Eanes, piloto lacobrigense às ordens do infante D. Henrique, dobra o Cabo Bojador. Era ultrapassada uma verdadeira barreira do medo, que inspirava pavor nos marinheiros desde que os irmãos genoveses Vandino e Ugolino Vivaldi desapareceram sem rasto por aquelas paragens, presumivelmente naufragados, ainda no decurso do século XIII.

O desastre militar de Tânger, em 1437, do qual a coroa portuguesa sai derrotada e em que o infante D. Henrique cede o próprio irmão D. Fernando como prisioneiro para salvaguardar a posição estratégica em Ceuta, leva a um adormecimento temporário das actividades marítimas. Somente sete anos mais tarde, o arquipélago de Cabo Verde seria avistado e os portugueses assegurariam mais uma posição importante para o comércio e para a navegação.

Tapeçarias de Pastrana: pormenor de Tomada de Arzila.


Entretanto, relações tinham sido estabelecidas com os mercadores da África subsaariana. Estas trocas comerciais levam ao assentamento de feitorias nessas regiões, como a fortaleza construída em 1445 na ilha de Arguim (actualmente território mauritano), por ordem do infante D. Henrique.

Tristemente célebre é o início do tráfico negreiro, que decorre por volta desta altura, com a criação de um mercado de escravos em Lagos, como descreve Gomes de Azurara na sua Crónica da Guiné (c. 1452-1453): “Mas qual seria o coração, mais duro que ser pudesse, que não fosse pungido de piedoso sentimento, vendo assim aquela companha? Que uns tinham as caras baixas e os rostos lavados em lágrimas, olhando uns contra os outros; outros estavam gemendo mui dorosamente, esguardando a altura dos céus, firmando os olhos em eles, bradando altamente, como se pedissem socorro ao Padre da Natureza; outros feriam o rosto com suas palmas, lançando-se estendidos no meio do chão; outros faziam lamentações em maneira de canto, segundo o costume de sua terra [...]. Mas para ser dó mais acrescentado, sobrevieram aqueles que tinham carregado da partilha e começaram de os apartar uns dos outros, a fim de porem os seus quinhões em igualeza; onde convinha de necessidade apartavam os filhos dos padres e as mulheres dos maridos e os irmãos uns dos outros. A amigos nem a parentes se guardava nenhuma lei, somente cada um caía onde a sorte o levava!

Em 1460, Pedro de Sintra atinge a Serra Leoa. Esta revelar-se-ia a última descoberta em vida do infante D. Henrique, que expira em Sagres a 13 de Novembro de 1460, deixando aberta para a exploração portuguesa aquela que se viria a nomear Rota da Cabo.


Infante D. Henrique: Réplica do jacente na Batalha.

O ano de 1481 assinala a subida ao trono D. João II, que chamariam de Príncipe Perfeito, vulto digno de dar continuidade aos feitos do insigne Infante de Sagres, seu tio-avô. É logo no ano seguinte que envia Diogo Cão, que após escala em S. Jorge da Mina, onde se assenta feitoria, atinge o Cabo de Santa Maria e aí ergue o padrão de Santo Agostinho. Seguindo para sul, explora diversos pontos nas imediações do rio Zaire, lançando novo padrão em Cabo Cruz, tornando a Lisboa em finais de 1486 ou inícios de 1487.

Pedra de Ielala, com as inscrições de Diogo Cão

Por volta dessa altura que largou ferro de Lisboa a expedição que assumiu a mais hercúlea tarefa da navegação portuguesa até então: partir rumo ao desconhecido e tornar contactáveis os oceanos Atlântico e o Índico. O comando desta missão coube ao experiente piloto Bartolomeu Dias, que em 1487 dobrou o extremo sul do continente africano, convertendo o Cabo das Tormentas em Cabo da Boa Esperança.


A dobra do Cabo da Boa Esperança é o marco inaugural de uma nova era da Humanidade, uma era de globalização e contacto (nem sempre pacífico) entre os povos. As suas consequências históricas demasiado amplas para definir. A quebra do monopólio imemorial da Rota da Seda para as trocas comerciais euroasiáticas altera a balança de poderes e introduz um primado do mundo ocidental nas relações internacionais (nem sempre assim foi). A Rota do Cabo manter-se-á a principal forma de contacto entre europeus e asiáticos até à criação do Canal do Suez, na segunda metade do século XIX, tendo a sua vigência durado quase quatro séculos.



Luís Alves Carpinteiro | Cabo Não    



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