quarta-feira, 27 de dezembro de 2023

O NOVO SÍMBOLO OFICIAL E O APAGAMENTO DA HISTÓRIA


    Perante a notícia avançada pela comunicação social de que o Estado português terá gasto a soma exorbitante de 74 mil euros na renovação da sua imagem institucional, para além do valor dispendido com o caricato resultado que se conhece, pretende-se aqui manifestar o desagrado pelo progressivo apagamento dos símbolos que afirmam a identidade e a cultura portuguesa. No sentido de consciencializar para este processo de que se encarregam os atores políticos num crescente movimento iconoclasta, o Cabo Não lança uma publicação especial dedicada aos símbolos da Nação Portuguesa.


    O artigo 11.º da Constituição da República Portuguesa, com início de vigência em 17 de Agosto de 2005, legisla na sua primeira alínea que "A Bandeira Nacional, símbolo da soberania da República, da independência, unidade e integridade de Portugal, é a adoptada pela República instaurada pela Revolução de 5 de Outubro de 1910". Mais define nas alíneas 2 e 3 que o Hino Nacional é A Portuguesa e que a língua oficial é o Português, respectivamente. Até recentemente, estas diretrizes estavam refletidas na imagem institucional da República Portuguesa, que foi agora substituída por uma insípida e feia composição geométrica, onde se diluem os elementos que caracterizam o Brasão de Armas de Portugal e o distinguem de outros países, nomeadamente a esfera armilar, as cinco quinas e os castelos.

    O design foi desenvolvido pelo Studio Eduardo Aires, liderado por Eduardo Aires, professor do Departamento de Design da Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, que já em 2015 admitia não se rever na bandeira portuguesa e sugeria que esta devia ser repensada.

    O novo símbolo, que é apenas um círculo amarelo entre dois retângulos, um verde e outro vermelho, é defendido por fonte oficial do Governo por supostamente responder "de forma mais eficaz aos novos contextos, determinados pela sofisticação da comunicação digital dinâmica e por uma consciência ecológica reforçada”. É também referido que a nova imagem é “inclusiva, plural e laica”. A bacoca e incompreensível justificação é pautada pela habitual arrogância de que um país não pode manter a sua identidade e ser inclusivo, ser distintivo e ao mesmo tempo plural, devendo antes amorfizar-se em prol de um futuro sem fronteiras e sem culturas nacionais. Esta justificação entra em contrassenso com a própria História de Portugal e com a imagem de nação com raízes pluriculturais de que Portugal goza e deve promover perante a comunidade internacional.
   
    A identidade histórica portuguesa, construída através dos séculos em contexto monárquico e mais tarde republicano, não se reduz às cores da bandeira verde, amarela e vermelha. Se assim fosse, não existiria distinção entre a bandeira portuguesa e a de países como a Bolívia, a Etiópia ou a Lituânia, para além da ordem em que estas cores surgem. Numa comunicação institucional do Estado português impressa a preto e branco, até mesmo este fator de identificação se perderia.

    O atual modelo da Bandeira de Portugal foi desenvolvido por uma comissão nomeada pelo Governo Provisório instaurado pela Revolução de 5 de Outubro de 1910, sendo o grafismo da autoria do pintor Columbano Bordalo Pinheiro o escolhido entre várias propostas. Foi adoptado de facto a 1 de dezembro de 1910 e sancionado oficialmente a 19 de junho de 1911.



Evolução da bandeira Portuguesa 1095?-1910


    A instituição da nova bandeira não se deu sem polémica, tendo sido a conjugação das cores verde e vermelha considerada uma quebra na tradição, ainda que historicamente o uso destas cores não fosse inteiramente novo, estando já presente na bandeira de D. João I que incorporava a flor-de-lis verde, insígnia heráldica da Ordem de Avis. A continuidade ocorreu ao nível das armas de Portugal no seu elemento central e da bipartição vertical em duas cores, que já se verificava na anterior bandeira de 1830, ainda que com um cromatismo diferente.     

    Todos ouvimos na escola, com pouco ou nenhum fundamento, que o verde simboliza a esperança no futuro e o vermelho simboliza o sangue derramado pelos que morreram pela Pátria. Apesar destas invenções posteriores que surgiram da tradição oral, as cores verde e vermelha foram escolhidas pelo seu significado político, uma vez que eram as cores das bandeiras içadas pelos republicanos nos golpes revolucionários de 31 de Janeiro de 1891 e de 5 de Outubro de 1910, afigurando-se como provável que fossem derivações da bandeira da Carbonária portuguesa, sociedade secreta associada aos combates de rua no âmbito do movimento republicano. Augusto Comte, pai da doutrina positivista e que era certamente lido no meio republicano, identificava o verde com "a cor da ordem e progresso das nações futuras". O vermelho surge em finais do século XIX ligado a vários movimentos populares e revolucionários como a Primavera dos Povos de 1848 e a Comuna de Paris de 1871.


Bandeira da Carbonária Portuguesa (1907)


    Estabelecidas algumas hipóteses para o simbolismo das cores da Bandeira de Portugal, este pode ser considerado essencialmente um produto da conjuntura política na qual a bandeira surge, a do republicanismo demoliberal inspirado ao nível europeu pela Revolução Francesa (1789) e subsequentes movimentos políticos revolucionários. Este paralelo é mais evidente na adopção da figura alegórica Marianne como personificação da República Portuguesa, adaptada ao contexto português pelo escultor José Simões de Almeida (1880-1950), à qual já dedicámos um artigo por ocasião dos 110 anos da Implantação da República.

    Por serem os símbolos de identificação nacional com maior duração no tempo, precisamente aqueles que estão omissos na nova imagem institucional, faz sentido aprofundar o significado histórico dos elementos que melhor caracterizam a nossa bandeira e a distinguem de todas as outras. São estes, o Escudo de Portugal, com as suas quinas e castelos, e a esfera armilar.


D. João I invocando Nossa Senhora da Oliveira na Batalha de Aljubarrota



I. O Escudo de Portugal

    O escudo é o mais constante símbolo identificativo da nação portuguesa desde a época da sua fundação na Idade Média. É constituído por um campo central de prata com cinco quinas e por uma bordadura vermelha com castelos. É denominado como "quina" cada um dos cinco escudetes representados nas Armas de Portugal. As quinas vieram a simbolizar por sinédoque várias expressões da portugalidade, como a referência à bandeira como "Bandeira das Quinas" ou no desporto, "a seleção das Quinas". Estão historicamente documentadas pela primeira vez no reinado de D. Sancho I (1185-1211), tendo sido definitivamente fixada a sua disposição e forma de representação em 1481. Segundo a tradição, as quinas representam os cinco reis mouros derrotados por D. Afonso Henriques na Batalha de Ourique (1139). 

    Apesar de existirem divergências nos relatos, a lenda conta que este emblema terá sido oferecido por Jesus Cristo ao primeiro rei de Portugal, no campo da dita batalha, deste modo garantindo-lhe a vitória contra um inimigo poderoso e numericamente superior. Como nação surgida no contexto da Reconquista Cristã, o mito fundacional evoca o lema daquele que terá sido o primeiro monarca cristão, o imperador romano Constantino I, In hoc signo vinces ("com este sinal vencerás"). Também o imperador romano terá tido uma visão no campo da Batalha da Ponte Mílvia (312 d. C.), avistando nos céus uma cruz formada de luz solar, portando a mensagem grega "Εν Τούτῳ Νίκα" (En toutō níka), vulgarmente traduzida para o latim da forma mencionada. Este evento profundamente simbólico assinala o início da conversão do Império Romano ao Cristianismo.

    O elemento com mais variações no Escudo de Portugal foi o número de castelos presentes na bordadura vermelha, sendo que o número de sete foi apenas fixado na segunda metade do século XVI. Surgem pela primeira vez no reinado de D. Afonso III (1238-1253), sendo por isso associados ao papel deste monarca na unificação do território continental português, completada com a Conquista de Faro em 1249. Cada um dos castelos representaria assim cada uma das povoações algarvias conquistadas por este rei, simbolizando mais amplamente a integração do Reino do Algarve na união. É também neste período que "Rei do Algarve" se insere definitivamente na titularia régia. Uma explicação mais prosaica poderá estar relacionada com o contexto da ascensão política de D. Afonso III, que tendo destronado o irmão D. Sancho II, incorporou como elemento distintivo as armas dinásticas de D. Urraca de Castela, sua mãe.



A esfera armilar na Sala da Capela da Torre de Belém


II. A Esfera Armilar  

    A esfera armilar é um instrumento astronómico utilizado na navegação desde a Antiguidade e que evoca para os portugueses o período das grandes navegações. Consiste numa versão reduzida do Cosmos e permaneceu como uma ferramenta utilizada para a geolocalização através de uma posição estimada dos astros aproximadamente até à invenção do telescópio no século XVII.
    
    O símbolo da esfera armilar surge na História de Portugal como empresa pessoal do rei D. Manuel I, que o próprio já tinha adoptado enquanto duque de Beja. Esta foi-lhe atribuída pelo rei D. João II, em 1484, quando o elevou simultaneamente a duque e a herdeiro da coroa portuguesa. A insígnia heráldica vinha acompanhada do lema Spera in Deo e fac bonitatem ("Espera em Deus e faz o bem"), abreviado na palavra Spera. O jogo de palavras por parte do rei foi considerado intencional, simbolizando a "Esfera" como representação do globo terrestre mas também a "Espera" de D. Manuel para subir ao trono.

    A esfera armilar é assim considerada o símbolo máximo do reinado manuelino, que coincide com o apogeu da expansão marítima e do poderio português, aparecendo profusamente nos documentos e arquitetura da época. Mesmo depois da morte de D. Manuel, continuou a ser usada como símbolo do poder imperial, como complemento ou mesmo substituto das armas de Portugal, mais evidentemente nas moedas emitidas em contexto colonial.

     Apesar da sua recorrência visual em todos estes suportes, só passaria a ser parte integrante das armas nacionais  já no século XIX, aquando da formação do efémero Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, em 1819. Após a sua declaração de independência em 1822, o Reino do Brasil manteria a esfera armilar nas suas armas e na sua bandeira até 1889. Em Portugal, no seguimento da Implantação da República, a esfera armilar seria reintroduzida na bandeira, simbolizando a "expansão marítima" e o "génio aventureiro" do povo português, conforme referido no relatório da comissão da nova bandeira nacional.



Luís Alves Carpinteiro | Cabo Não



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