quarta-feira, 27 de dezembro de 2023

O NOVO SÍMBOLO OFICIAL E O APAGAMENTO DA HISTÓRIA


    Perante a notícia avançada pela comunicação social de que o Estado português terá gasto a soma exorbitante de 74 mil euros na renovação da sua imagem institucional, para além do valor dispendido com o caricato resultado que se conhece, pretende-se aqui manifestar o desagrado pelo progressivo apagamento dos símbolos que afirmam a identidade e a cultura portuguesa. No sentido de consciencializar para este processo de que se encarregam os atores políticos num crescente movimento iconoclasta, o Cabo Não lança uma publicação especial dedicada aos símbolos da Nação Portuguesa.


    O artigo 11.º da Constituição da República Portuguesa, com início de vigência em 17 de Agosto de 2005, legisla na sua primeira alínea que "A Bandeira Nacional, símbolo da soberania da República, da independência, unidade e integridade de Portugal, é a adoptada pela República instaurada pela Revolução de 5 de Outubro de 1910". Mais define nas alíneas 2 e 3 que o Hino Nacional é A Portuguesa e que a língua oficial é o Português, respectivamente. Até recentemente, estas diretrizes estavam refletidas na imagem institucional da República Portuguesa, que foi agora substituída por uma insípida e feia composição geométrica, onde se diluem os elementos que caracterizam o Brasão de Armas de Portugal e o distinguem de outros países, nomeadamente a esfera armilar, as cinco quinas e os castelos.

    O design foi desenvolvido pelo Studio Eduardo Aires, liderado por Eduardo Aires, professor do Departamento de Design da Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, que já em 2015 admitia não se rever na bandeira portuguesa e sugeria que esta devia ser repensada.

    O novo símbolo, que é apenas um círculo amarelo entre dois retângulos, um verde e outro vermelho, é defendido por fonte oficial do Governo por supostamente responder "de forma mais eficaz aos novos contextos, determinados pela sofisticação da comunicação digital dinâmica e por uma consciência ecológica reforçada”. É também referido que a nova imagem é “inclusiva, plural e laica”. A bacoca e incompreensível justificação é pautada pela habitual arrogância de que um país não pode manter a sua identidade e ser inclusivo, ser distintivo e ao mesmo tempo plural, devendo antes amorfizar-se em prol de um futuro sem fronteiras e sem culturas nacionais. Esta justificação entra em contrassenso com a própria História de Portugal e com a imagem de nação com raízes pluriculturais de que Portugal goza e deve promover perante a comunidade internacional.
   
    A identidade histórica portuguesa, construída através dos séculos em contexto monárquico e mais tarde republicano, não se reduz às cores da bandeira verde, amarela e vermelha. Se assim fosse, não existiria distinção entre a bandeira portuguesa e a de países como a Bolívia, a Etiópia ou a Lituânia, para além da ordem em que estas cores surgem. Numa comunicação institucional do Estado português impressa a preto e branco, até mesmo este fator de identificação se perderia.

    O atual modelo da Bandeira de Portugal foi desenvolvido por uma comissão nomeada pelo Governo Provisório instaurado pela Revolução de 5 de Outubro de 1910, sendo o grafismo da autoria do pintor Columbano Bordalo Pinheiro o escolhido entre várias propostas. Foi adoptado de facto a 1 de dezembro de 1910 e sancionado oficialmente a 19 de junho de 1911.



Evolução da bandeira Portuguesa 1095?-1910


    A instituição da nova bandeira não se deu sem polémica, tendo sido a conjugação das cores verde e vermelha considerada uma quebra na tradição, ainda que historicamente o uso destas cores não fosse inteiramente novo, estando já presente na bandeira de D. João I que incorporava a flor-de-lis verde, insígnia heráldica da Ordem de Avis. A continuidade ocorreu ao nível das armas de Portugal no seu elemento central e da bipartição vertical em duas cores, que já se verificava na anterior bandeira de 1830, ainda que com um cromatismo diferente.     

    Todos ouvimos na escola, com pouco ou nenhum fundamento, que o verde simboliza a esperança no futuro e o vermelho simboliza o sangue derramado pelos que morreram pela Pátria. Apesar destas invenções posteriores que surgiram da tradição oral, as cores verde e vermelha foram escolhidas pelo seu significado político, uma vez que eram as cores das bandeiras içadas pelos republicanos nos golpes revolucionários de 31 de Janeiro de 1891 e de 5 de Outubro de 1910, afigurando-se como provável que fossem derivações da bandeira da Carbonária portuguesa, sociedade secreta associada aos combates de rua no âmbito do movimento republicano. Augusto Comte, pai da doutrina positivista e que era certamente lido no meio republicano, identificava o verde com "a cor da ordem e progresso das nações futuras". O vermelho surge em finais do século XIX ligado a vários movimentos populares e revolucionários como a Primavera dos Povos de 1848 e a Comuna de Paris de 1871.


Bandeira da Carbonária Portuguesa (1907)


    Estabelecidas algumas hipóteses para o simbolismo das cores da Bandeira de Portugal, este pode ser considerado essencialmente um produto da conjuntura política na qual a bandeira surge, a do republicanismo demoliberal inspirado ao nível europeu pela Revolução Francesa (1789) e subsequentes movimentos políticos revolucionários. Este paralelo é mais evidente na adopção da figura alegórica Marianne como personificação da República Portuguesa, adaptada ao contexto português pelo escultor José Simões de Almeida (1880-1950), à qual já dedicámos um artigo por ocasião dos 110 anos da Implantação da República.

    Por serem os símbolos de identificação nacional com maior duração no tempo, precisamente aqueles que estão omissos na nova imagem institucional, faz sentido aprofundar o significado histórico dos elementos que melhor caracterizam a nossa bandeira e a distinguem de todas as outras. São estes, o Escudo de Portugal, com as suas quinas e castelos, e a esfera armilar.


D. João I invocando Nossa Senhora da Oliveira na Batalha de Aljubarrota



I. O Escudo de Portugal

    O escudo é o mais constante símbolo identificativo da nação portuguesa desde a época da sua fundação na Idade Média. É constituído por um campo central de prata com cinco quinas e por uma bordadura vermelha com castelos. É denominado como "quina" cada um dos cinco escudetes representados nas Armas de Portugal. As quinas vieram a simbolizar por sinédoque várias expressões da portugalidade, como a referência à bandeira como "Bandeira das Quinas" ou no desporto, "a seleção das Quinas". Estão historicamente documentadas pela primeira vez no reinado de D. Sancho I (1185-1211), tendo sido definitivamente fixada a sua disposição e forma de representação em 1481. Segundo a tradição, as quinas representam os cinco reis mouros derrotados por D. Afonso Henriques na Batalha de Ourique (1139). 

    Apesar de existirem divergências nos relatos, a lenda conta que este emblema terá sido oferecido por Jesus Cristo ao primeiro rei de Portugal, no campo da dita batalha, deste modo garantindo-lhe a vitória contra um inimigo poderoso e numericamente superior. Como nação surgida no contexto da Reconquista Cristã, o mito fundacional evoca o lema daquele que terá sido o primeiro monarca cristão, o imperador romano Constantino I, In hoc signo vinces ("com este sinal vencerás"). Também o imperador romano terá tido uma visão no campo da Batalha da Ponte Mílvia (312 d. C.), avistando nos céus uma cruz formada de luz solar, portando a mensagem grega "Εν Τούτῳ Νίκα" (En toutō níka), vulgarmente traduzida para o latim da forma mencionada. Este evento profundamente simbólico assinala o início da conversão do Império Romano ao Cristianismo.

    O elemento com mais variações no Escudo de Portugal foi o número de castelos presentes na bordadura vermelha, sendo que o número de sete foi apenas fixado na segunda metade do século XVI. Surgem pela primeira vez no reinado de D. Afonso III (1238-1253), sendo por isso associados ao papel deste monarca na unificação do território continental português, completada com a Conquista de Faro em 1249. Cada um dos castelos representaria assim cada uma das povoações algarvias conquistadas por este rei, simbolizando mais amplamente a integração do Reino do Algarve na união. É também neste período que "Rei do Algarve" se insere definitivamente na titularia régia. Uma explicação mais prosaica poderá estar relacionada com o contexto da ascensão política de D. Afonso III, que tendo destronado o irmão D. Sancho II, incorporou como elemento distintivo as armas dinásticas de D. Urraca de Castela, sua mãe.



A esfera armilar na Sala da Capela da Torre de Belém


II. A Esfera Armilar  

    A esfera armilar é um instrumento astronómico utilizado na navegação desde a Antiguidade e que evoca para os portugueses o período das grandes navegações. Consiste numa versão reduzida do Cosmos e permaneceu como uma ferramenta utilizada para a geolocalização através de uma posição estimada dos astros aproximadamente até à invenção do telescópio no século XVII.
    
    O símbolo da esfera armilar surge na História de Portugal como empresa pessoal do rei D. Manuel I, que o próprio já tinha adoptado enquanto duque de Beja. Esta foi-lhe atribuída pelo rei D. João II, em 1484, quando o elevou simultaneamente a duque e a herdeiro da coroa portuguesa. A insígnia heráldica vinha acompanhada do lema Spera in Deo e fac bonitatem ("Espera em Deus e faz o bem"), abreviado na palavra Spera. O jogo de palavras por parte do rei foi considerado intencional, simbolizando a "Esfera" como representação do globo terrestre mas também a "Espera" de D. Manuel para subir ao trono.

    A esfera armilar é assim considerada o símbolo máximo do reinado manuelino, que coincide com o apogeu da expansão marítima e do poderio português, aparecendo profusamente nos documentos e arquitetura da época. Mesmo depois da morte de D. Manuel, continuou a ser usada como símbolo do poder imperial, como complemento ou mesmo substituto das armas de Portugal, mais evidentemente nas moedas emitidas em contexto colonial.

     Apesar da sua recorrência visual em todos estes suportes, só passaria a ser parte integrante das armas nacionais  já no século XIX, aquando da formação do efémero Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, em 1819. Após a sua declaração de independência em 1822, o Reino do Brasil manteria a esfera armilar nas suas armas e na sua bandeira até 1889. Em Portugal, no seguimento da Implantação da República, a esfera armilar seria reintroduzida na bandeira, simbolizando a "expansão marítima" e o "génio aventureiro" do povo português, conforme referido no relatório da comissão da nova bandeira nacional.



Luís Alves Carpinteiro | Cabo Não



sexta-feira, 8 de dezembro de 2023

A IMACULADA CONCEIÇÃO E A HISTÓRIA DE PORTUGAL: DA CONQUISTA DE LISBOA À ATUALIDADE


Inmaculada Concepción (1682), por Murillo


A Imaculada Conceição (ou Imaculada Concepção) é um dogma da Igreja Católica que afirma que a Virgem Maria foi preservada do pecado original desde o momento da sua concepção, instituído por Pio IX a 8 de Dezembro de 1854, através da bula Ineffabilis Deus. O seu culto tem origem no cristianismo oriental e chega à Europa pelas mãos dos cruzados nos séculos XI e XII. A Nossa Senhora da Conceição é rainha e padroeira de Portugal, bem como de todos os povos de língua portuguesa. A sua festa celebra-se hoje, 8 de Dezembro, e até já foi Dia da Mãe em Portugal, continuando a maternidade a ser homenageada neste dia em vários países ibero-americanos.


Porquê é que se diz que a Imaculada Conceição é rainha de Portugal? Isto deve-se ao gesto do primeiro rei da quarta dinastia, D. João IV de Bragança, que em ação de graças pelo sucesso da Restauração da Independência em 1640, coroou a imagem de Nossa Senhora da Conceição da Igreja de Santa Maria do Castelo (Vila Viçosa) como rainha de Portugal. O gesto tornou-se uma promessa solene respeitada por todos os monarcas brigantinos até à implantação da república, que não voltariam a usar a coroa nas suas cabeças, sendo esta colocado sobre uma almofada ao seu lado direito em ocasiões solenes.

Mas a relação do culto imaculista com a nação portuguesa é muito mais antiga, remetendo às origens da própria nacionalidade. Segundo a tradição, o fundador D. Afonso Henriques realizou uma missa pontificial de ação de graças dedicado à Imaculada Conceição, logo após a Conquista de Lisboa, em Outubro de 1147. Em Portugal, a evocação desta santidade transcende muito a questão religiosa, sendo o 8 de Dezembro o prolongamento natural do 1 de Dezembro e portanto uma comemoração da própria nação portuguesa e da sua soberania.




Visão de Afonso Henriques na Batalha de Ourique (1665), por Frei Manuel dos Reis


Para a dinastia entronizada pelo golpe de estado revolucionário de 1 de Dezembro de 1640, o simbolismo da Conceição adquire contornos fundacionais por si, pela sua ligação ao Condestável D. Nuno Álvares Pereira, fundador simbólico do ducado que teve origem na união da sua filha única Dona Brites Pereira com Afonso de Portugal, filho bastardo do rei D. João I. É dito no seguimento da Batalha de Aljubarrota, D. Nuno Álvares Pereira fundou a Igreja de Nossa Senhora do Castelo em Vila Viçosa e ofereceu a imagem da Virgem Padroeira, adquirida em Inglaterra.

A intenção de tornar a Imaculada Conceição padroeira de Portugal ficou demonstrada logo no 8 de Dezembro de 1640, quando o Frei João de S. Bernardino, ao pregar na capela Real de Lisboa na presença do Duque de Bragança, agora já Rei de Portugal, termina o sermão com a promessa: “Seja assi, Senhora, seja assi; e eu vos prometo, em nome de todo este Reyno, que elle agradecido levante um tropheo a Vossa Immaculada Conceição, que vencendo os seculos, seja eterno monumento da Restauração de Portugal, Fiat, fiat”.

A oficialização do patronato chegaria nas cortes de 25 de Março de 1646, com D. João IV a proclamar, “tomar por padroeira de nossos Reinos e Senhorios a Santissima Virgem Nossa Senhora da Comseição . . . confessare deffender May de Deus foi concebida sem pecado original”. Por esta proclamação a Virgem Imaculada era constituída Senhora e Rainha de Portugal, a verdadeira soberana da nação portuguesa, na presença dos três Estados do reino reunidos.

Este mesmo monarca, em 1648, mandou cunhar moedas de ouro e de prata chamadas Conceição, com a seguinte legenda: no anverso Joannes IIII, D. G. Portugaliae et Algarbiae Rex, a cruz da Ordem de Cristo, e no centro as armas de Portugal. No reverso a imagem de Nossa Senhora da Conceição, sobre o globo e a meia-lua, com data de 1648, e nos lados o sol, o espelho, o horto, a casa de ouro, a fonte selada e a arca do santuário e a legenda TVTELARIS REGNI.




Vitrais da Basílica de Nossa Senhora do Sameiro (1961), por Martins Barata


A 30 de Junho de 1654, o referido monarca, enviou a todas as Câmaras cópia da inscrição latina comemorativa do juramento solene feito em 25 de Março de 1646 e para que fosse mais notória a obrigação de defender “que a Virgem Senhora Nossa foi concebida sem pecado original” ordenou que aquela inscrição fosse gravada em pedra e colocada nas portas e lugares públicos das cidades e vilas do reino.

Também neste mesmo ano de 1654 o reitor, lentes, doutores e mestres da Universidade de Coimbra, reuniram-se e determinaram que a fórmula do juramento de todos os futuros graduados começasse pela declaração de "defender sempre e em toda a parte que a Bem-aventurada Virgem Maria, Mãe de Deus, foi concebida sem a mancha do pecado original". Até 1910 o cumprimento de tal juramento era condição para se obter qualquer grau universitário.

Por Decreto de 20 de Junho de 1696, o Príncipe Regente D. Pedro, futuro D. Pedro II, aprovou a Confraria dos Escravos de Nossa Senhora da Conceição, cuja missão era promover e incutir nos membros uma especial devoção a Nossa Senhora da Conceição. Também o seu sucessor, D. João V, a 12 de Dezembro de 1717, em circular enviada à Universidade de Coimbra e a todos os prelados e colegiais do reino, recomendava-lhes que todos os anos celebrassem nas suas igrejas a festa da Imaculada Conceição, recordando o juramento de D. João IV.

Após a proclamação dogmática em 1854 surgiu em Portugal um movimento no sentido de erguer um monumento nacional em homenagem da Imaculada Conceição. Em 1869 concluiu-se esse primeiro monumento no cume de uma montanha em Braga, seguindo-se-lhe a construção do Santuário de Nossa Senhora do Sameiro. Em 1904, a figura da Nossa Senhora do Sameiro seria solenemente coroada pelo Núncio Apostólico José Macchi, delegado enviado por Pio X, em imitação do ato de D. João IV em 1646.


Consultas bibliográficas:

https://www.snpcultura.org/imaculada_conceicao_e_historia_portugal.html
https://risco-continuo.blogs.sapo.pt/564773.html


Luís Alves Carpinteiro | Cabo Não


quarta-feira, 18 de outubro de 2023

A ACADEMIA REAL DA HISTÓRIA PORTUGUESA


Alegoria à Academia Real da História (1735), por Francisco Vieira Lusitano


A 8 de dezembro de 1720, no dia da Imaculada Conceição, era fundada por decreto de D. João V a Academia Real da História Portuguesa, com o objetivo de “escrever a História de Portugal e de suas Conquistas”. Foi adotada como divisa a frase latina Restituet omnia, onde se afirmava a vocação de restaurar toda a memória e reunir todos os documentos, com o propósito de redigir pelos métodos modernos a História Eclesiástica e Secular de Portugal e dos seus domínios ultramarinos.

Esta missão foi depositada nos 50 sócios que compunham a Real Academia: “40 da Academia de Anónimos e das Conferências Discretas e 10 escolhidos pelo Rei”. Entre os seus académicos notáveis encontravam-se D. Manuel Caetano de Sousa, os marqueses de Abrantes, de Alegrete, de Fronteira, de Valença, o conde da Ericeira, D. António Caetano de Sousa, Manuel Teles da Silva, Diogo Barbosa Machado, Alexandre Ferreira, Jerónimo Contador Argote, Raphael Bluteau ou o Padre António dos Reis.

A sua génese insere-se num Iluminismo incipiente manifestado no reinado de D. João V e deveu-se em parte à ação política de dois dos seus principais impulsionadores, D. António Caetano de Sousa e Francisco Xavier de Meneses, conde da Ericeira. É sucessora de diversos cenáculos e tertúlias em campos díspares como as letras, as ciências, a filosofia e as artes (as chamadas Academias Menores) que proliferam em Lisboa desde meados do século XVII: Academia dos Generosos (1647), Academia Portuguesa (1696), Academia da História Eclesiástica (1715), Academia dos Ilustrados (1716), Academia dos Anónimos (1717) e Academia dos Retóricos (1720).

A Academia Real da História vai agregar alguns dos membros das Academias Menores cuja experiência tinha despertado o interesse para a atividade historiográfica (notavelmente a Academia Portuguesa e a Academia da História Eclesiástica) e  assumir um carácter pioneiro no contexto europeu, antecedendo em 18 anos a sua homóloga espanhola, decretada a 18 de abril de 1738 pelo rei Filipe V.

D. António Caetano de Sousa (1674-1759)


A Academia reunia de quinze em quinze dias no Paço dos Duques de Bragança para a "leitura das Memórias e dos Catálogos de nomes ilustres". Os seus trabalhos decorreram com invulgar liberdade para a época, tendo o Decreto de 29 de abril de 1722 isentado as suas publicações de censura prévia do Desembargo do Paço, ficando apenas sujeitas à supervisão de quatro censores privados. Em 1727, é lançado a História da Academia Real da História Portuguesa, pelo marquês de Alegrete.

O seu legado é composto por um corpus de 15 volumes (Coleção dos documentos e memórias, publicada anualmente entre 1721 e 1736) e as obras dos seus sócios, entre as quais se destacam a História Genealógica da Casa Real Portuguesa, de D. António Caetano de Sousa, e as respetivas Provas (1735-1748); Memórias sobre D. Sebastião, de Diogo Barbosa Machado (1736-1751); Biblioteca Lusitana, de Diogo Barbosa Machado (1741-1759); Notícias Cronológicas da Universidade de Coimbra, de Francisco Leitão Ferreira (1729); Memórias para a História Eclesiástica do Arcebispado de Braga, de D. Jerónimo Contador de Argote (1732-1747).

História Genealógica da Casa Real Portuguesa (folha de rosto)


A análise da Coleção dos documentos e memórias permite-nos obter preciosas pistas de como decorriam os labores científicos. Segundo Humberto Baquero Moreno "a grande preocupação dos membros da Academia consistiu na recolha de materiais que permitissem edificar uma história religiosa e secular de Portugal". O poder legislativo do monarca acompanhou e deu ampla cobertura aos académicos com medidas que podem ser consideradas percursoras dos planos de salvaguarda modernos, como a proteção de "papéis, medalhas, restos arqueológicos e outros materiais cuja utilidade era evidente" e a proibição da destruição de "estátuas, mármores e cipos" e ainda "medalhas e moedas antigas que perdurassem até ao reinado de D. Sebastião".

A decadência desta instituição foi, todavia, paulatina mas inexorável, cessando-se a publicação das suas coleções logo em 1736. A crise foi exacerbada pelo Terramoto de Lisboa de 1755 que provocou a derrocada do Paço dos Duques de Bragança e com ela a perda de parte importante do acervo documental. De acordo com Baquero Moreno, o Pombalismo foi "adverso à sua existência" por ver nestes movimentos da nobreza culta um obstáculo à política centralizadora.

A anunciada extinção ocorre, por falta de atividade, por volta de 1776, sendo também atribuída às “desavenças que desde o início dividiram os académicos” ou à “criação da Academia Real das Ciências”. De modo a preencher o vácuo deixado pela ausência de estudos históricos o rei D. José criou a cadeira de Diplomática, a qual "tinha em vista o conhecimento interpretativo dos conhecimentos atinentes à História de Portugal", e chegaria à Universidade de Coimbra no reinado seguinte, pela mão de D. Maria I. Em 1936, no âmbito das celebrações dos 10 anos do Estado Novo, dá-se a fundação da Academia Portuguesa de História, que se assume como sua sucessora e se encontra sediada no Palácio dos Lilases, na Alameda das Linhas de Torres, em Lisboa.


Luís Alves Carpinteiro | Cabo Não

domingo, 5 de fevereiro de 2023

OS MODERNISTAS: AMADEO DE SOUZA-CARDOSO

 

Aquele que muitos consideram a figura maior da pintura portuguesa do século XX, Amadeo de Souza-Cardoso, viveu a sua breve vida entre Portugal e Paris, onde chega aos 19 anos para continuar os estudos de arquitectura que iniciara em Lisboa. O contacto com o efervescente meio artístico da capital francesa e com um círculo de pintores da vanguarda influenciou radicalmente o seu estilo e em 1907 o seu amigo Manuel Laranjeira já o reconhecia como "um artista no significado absoluto do termo".


Retrato Paysagem , 1913


No dia 14 de Novembro de 1887, nasce em Manhufe, nos arredores de Amarante, Amadeo Ferreira de Souza-Cardoso, um entre a numerosa prole de José Emygdio de Souza-Cardoso, um abastado proprietário rural, e Emília Cândida Ferreira Cardoso.

Em 1905, aos 17 anos, parte para Lisboa onde cursa Arquitectura na Academia de Belas-Artes sem no entanto levar ao término. Neste período desenvolve a sua faceta de desenhador, sobretudo através da caricatura, incentivado pelo amigo Manuel Laranjeira. No dia em que completa 19 anos parte para Paris, acompanhado de Francisco Smith, estabelecendo-se inicialmente no Boulevard de Montparnasse.




A 6 de Janeiro de 1907 encontra-se plenamente estabelecido em Paris e num jantar no restaurante Daumesmil, no Quartier Latin, ilustra a ementa com a caricatura de todos os comensais, desenho que será publicado no jornal portuense “O Primeiro de Janeiro”. Em Outubro do mesmo ano viaja até à Bretanha com o colega pintor Eduardo Viana.

No ano seguinte, alugará um estúdio na Cité Falguiére onde reúne em ambiente de tertúlia e boémia o grupo dos artistas portugueses: Manuel Bentes, Emmérico Nunes, Eduardo Viana, Domingos Rebelo, Francisco Smith, entre outros. Por volta desta época conhece Lúcia Pecetto, com quem casaria em 1914.

"O Triunfo de Baco", encenado por Amadeo, Domingos Rebelo, Emmérico, Bentes e José Pedro Cruz (1906)


Em 1909 volta a mudar-se, desta vez para a Rue de Fleures, aproximando-se do epicentro da actividade artística internacional, paredes meias com Gertrude Stein. Frequenta a Academia Viti do espanhol Anglada Camarasa e amiga-se com o pintor italiano Amedeo Modigliani. Distancia-se dos artistas portugueses a quem atribui uma “rotina atrasada”, para se aproximar de um círculo internacional de artistas, travando conhecimento Brancusi, Juan Gris, Diego Rivera, Sónia e Roberto Delauney, entre outros.

Em 1911 assenta-se na Rue du Colonel Combes, perto do Quai d’Orsay. Em Outubro desse ano é este espaço que acolhe a sua exposição conjunta com Modigliani. Expõe seis obras no Salon des Indépendants, ao qual voltará em 1912 e novamente em 1914.


Amadeo de Souza-Cardoso no seu estúdio (1912)


Em 1912 publica “XX Dessins”, prefaciado por Jerôme Doucet, que o consolida como prodígio recém-chegado à efervescente cena artística parisiense. O álbum vale-lhe críticas muito favoráveis do prestigiado Louis Vauxcelles, famoso adversário de fauvistas e cubistas, que elogia o volume como "a coisa mais maravilhosa que jamais viram nossos olhos" considerando que o autor "criou um mundo novo. A natureza, seres vivos, animais ou criaturas humanas, flora e fauna, saiu do seu cérebro de lírico alucinado". É também neste período que produz um manuscrito ilustrado da Légende de Saint Julien l’Hospitalier de Gustave Flaubert.


"Le Tigre"; XX Dessins (1912)



Amadeo empenha-se em levar o seu trabalho para outras paragens e em 1913 integra a International Exhibition of Modern Art, também conhecida como Armory Show, no que constituiu a primeira mostra de arte moderna europeia em terras norte-americanas, levando obras de artistas como Braque, Matisse ou Marcel Duchamp a Nova Iorque, Chicago e Boston. A exposição é um sucesso para Amadeo e três das suas obras são adquiridas pelo coleccionador Arthur J. Eddy, actualmente integradas na colecção do Art Institute de Chicago. No ano seguinte, pinturas de Souza-Cardoso estarão patentes na obra “Cubist and Post-Impressionism”, publicada pelo coleccionador, onde exalta o seu "sentimento romântico", o "fascínio da sua cor", o seu sentido "feérico". Em Setembro de 1913, após nova mudança de estúdio, o seu trabalho chegará à Alemanha ao ser exibido no I Herbstsalon de Berlin, que toma lugar na Galeria Der Sturm.


Uma das obras adquiridas por Arthur J. Eddy, actualmente no Art Institute of Chicago


Em Abril de 1914 submete três trabalhos para uma exposição da Royal Academy de Londres, que viria a ser cancelada pelo advento da Primeira Guerra Mundial. No verão de 1914 Amadeo encontra-se em Manhufe, onde passa férias, vindo-se impedido de tornar a Paris pelo deflagrar do conflito.

Em 1915 é visitado na terra natal pelo casal Sónia e Robert Delauney, que se fixariam em Vila do Conde. Recupera a relação com Eduardo Viana e conhece Almada Negreiros. Através de Almada estabelece contacto com os Futuristas lisboetas, reunidos inicialmente em torno da revista Orpheu. O exílio inesperado de Amadeo em Portugal não é um momento de “apatia criativa”, pelo contrário constitui a “plena maturação da sua pintura” (Joana Cunha Leal).


Canção Popular - A Russa e o Fígaro (c. 1916)


Em Dezembro de 1916, exibe a sua obra numa exposição sob o título “Abstraccionismo”, primeiro em Lisboa e depois no Porto. A excepcionalidade de Amadeo na cena artística portuguesa faz com que a mostra seja recebida com aura escândalo, culminando o ultraje público em agressões físicas ao pintor. Caberá a Almada Negreiros e a Fernando Pessoa a sua defesa pública.

A 25 de Outubro de 1917, Amadeo morre bruscamente, vítima da gripe espanhola que assolara a Europa no final da Primeira Guerra Mundial. Tinha apenas 30 anos. A maioria da sua obra será legada à Fundação Calouste Gulbenkian pela sua esposa Lúcia Pecetto.

Na sua obra "A Arte em Portugal no século XX", José-Augusto França, conjectura sobre o que poderia ter sido a carreira futura do jovem pintor, que já tinha viagem marcada de volta para Paris:

"Em Paris, Amadeo prosseguiria uma carreira que, à distância, (...) podemos ser levados a sobrestimar; (...) Ele ficará para sempre como uma esperança - e, para a arte portuguesa, como a «primeira descoberta» no século XX, (...) A sua arte foi, com efeito, uma garantia de modernidade oferecida à pintura portuguesa - a única dada no seu tempo, ao lado daquela que Santa-Rita de certo modo recusou proporcionar."


Luís Alves Carpinteiro | Cabo Não

segunda-feira, 23 de janeiro de 2023

O ROMANTISMO PORTUGUÊS E A CULTURA POPULAR



O movimento romântico surge em Portugal num contexto histórico e político particular: o do liberalismo e das oposições entre liberais e absolutistas. Não obstante algumas manifestações protoromânticas estarem já presentes na literatura portuguesa anteriormente, em Portugal o Romantismo como movimento emerge em pleno a partir do segundo quartel do século XIX.


Passos Manuel, Almeida Garrett, Alexandre Herculano e José Estevão de Magalhães


No panorama internacional, aparece intimamente relacionado com a construção de uma Europa de Estados-Nação, assumindo-se como veículo dos sentimentos nacionais e do ideário nacionalista. Não raras vezes, os românticos aparecem associados a eventos históricos centrais na formação das nações europeias, como a Guerra da Independência da Grécia (1821-1829), a Unificação de Itália (1870) ou a Unificação da Alemanha (1871), que ocorrem neste período e em que participam.


 Johann von Goethe, uma das figuras cimeiras do Romantismo europeu


O historicismo ou a centralidade da História, que no Romantismo português se materializa sobretudo no revivalismo medieval ou na ressurreição de estilos arquitetónicos como o manuelino, é uma das suas caraterísticas definidoras. Através deste tipo de intervenção os românticos pretendiam evocar um passado glorioso e criar um sentimento nacional, e faziam-no com recurso a momentos-chave da formação das identidades nacionais, no caso português a fundação da nacionalidade na Idade Média e a gesta dos Descobrimentos.

O discurso nacionalista prezava, citando as palavras da investigadora Carla Ribeiro, “a unidade, a originalidade e a diferença”; demonstrava interesse pelas manifestações que suscetíveis de comprovar o génio nacional, investidas de “um carácter único, singular e simultaneamente, comprovando a antiguidade da Nação”. Abraçado também pelos românticos, este desiderato de alcançar uma pureza ancestral encontraria eco nas massas populares e campesinas, dando origem a um culto do demótico, de elogio do povo e das suas coisas.

A visão de "Nação" dos românticos é particular: destacam o Portugal rural como o verdadeiro Portugal. Rejeitam o cosmopolitismo dos grandes centros urbanos, que dizem estar contaminado com o sentimento anglófilo ou francófilo. Para eles as raízes da nacionalidade encontram-se nas gentes campesinas, que viam como um povo eterno e imutável. Reagem a uma crise de identidade nascida de um período de aceleração histórica: apegam-se à simplicidade da vida rural que contrasta com o frenesim urbano, decorrente da industrialização.




No ambiente cultural português, certas figuras tornaram-se indissociáveis do Romantismo e pode-se mesmo dizer que o encarnaram. A este nível é inevitável destacar Almeida Garrett e Alexandre Herculano, intelectuais multifacetados que integraram a denominada primeira geração romântica. A Almeida Garrett é mesmo atribuída a introdução do movimento nos meios literários portugueses, apontando-se para os seus poemas Camões (1825) e Dona Branca (1826) como escritos pioneiros. Ambos desempenham um papel ativo nas Guerras Liberais (1832-1834), estando presentes do lado liberal no Desembarque do Mindelo e no Cerco do Porto, atitude demonstrativa da participação cívica dos românticos.

Terá sido Almeida Garrett o primeiro a fazer um levantamento do património popular português que chega até nós em obras como Romanceiro e Cancioneiro Geral de 1843. Nas palavras do autor era pretendido dar a conhecer a “outra literatura que era a verdadeira nacional, a popular, a vencida, a tiranizada por esses invasores gregos e romanos”. Na introdução ao segundo volume do Romanceiro, Garrett asseverava a necessidade de se “estudar as nossas primitivas fontes poéticas, os romances em verso e as lendas em prosa; as fábulas e crenças velhas, as costumeiras e as superstições antigas; (…) o tom e o espírito verdadeiro português esse é forçoso estudá-lo no grande livro nacional, que é o povo e a suas tradições”.

Em 1851 era a vez de Alexandre Herculano publicar os dois volumes das suas Lendas e Narrativas, uma coletânea de literatura popular na senda das recolhas de folclore dos irmãos Grimm na atual Alemanha ou dos romances de Walter Scott no Reino Unido. No prefácio, Herculano expressava a vontade de “introduzir na literatura nacional um género amplamente cultivado, em todos os países da Europa”, esperando que este seu gesto viesse a constituir “a sementinha donde proveio a floresta”. O levantamento levado a cabo, composto essencialmente por lendas populares e pequenos contos de tradição oral, constituiu um marco assinalável na história literária portuguesa.

Com Garrett e Herculano são consumados os primeiros impulsos de uma prática de recolha da literatura popular e folclore, que sobreviviam apenas através da repetição oral, enfrentando as fragilidades de preservação inerentes a este meio de transmissão. Com maior ou menor intencionalidade, eram criadas as primeiras metodologias de salvaguarda, predecessoras da etnografia, de conversão destas manifestações para um registo escrito com maior capacidade de resistir ao passar do tempo.

Também na música o movimento romântico deixou o seu lastro. Mais associado às óperas de índole nacionalista (com destaque para Verdi na Itália e Wagner na Alemanha), é neste período que se manifesta uma etnomusicologia incipiente, com as primeiras recolhas de música popular. Neste contexto nascerá um fenómeno de intercâmbio entre música erudita e popular. Na esperança de quebrar com as influências estrangeiras predominantes, a música erudita urbana vai colher influências ao cancioneiro rural de raiz tradicional. A partir destas recolhas, compositores eruditos vão levar a cabo uma harmonização da música popular para piano, com vista à criação de uma “composição nacional”. Neste exercício notabilizam-se Alfredo Keil (1850-1907) e Vianna da Motta (1868-1948), entre outros.


“Nenhuma coisa pode ser nacional se não é popular.” Almeida Garrett in Romanceiro e Cancioneiro Geral (1843)

Com esta afirmação, que nos lega na nota introdutória para o seu Romanceiro e Cancioneiro Geral, Almeida Garrett remete-nos para as aceções românticas de “Nação” e de “Povo”. Para os românticos as verdadeiras raízes da nacionalidade seriam encontradas não nas cidades, em acelerada mudança social e tecnológica, mas nos campos, onde vivia o povo que “escudado do progresso e das influências estrangeiras, soube conservar as raízes da Nação, dos valores imemoriais que vivem na tradição, apresentando-os na sua forma mais pura” (RIBEIRO; 2012).

As recolhas de cultura popular levadas a cabo por autores românticos como Garrett e Herculano simbolizam uma demanda pela pureza e pela ancestralidade, com a missão de encontrar a nacionalidade que, a seu ver, seria a “mais verdadeira”. No caso português, a necessidade desta demanda é acentuada por uma conjuntura histórica e política bem localizada: a estruturação de uma sociedade liberal no pós-1820, que exigia, como afirma Augusto Santos Silva “criar uma nova civilização, fazendo vingar novas instâncias e padrões de socialização (…), novos quadros de valores e normas, novas práticas materiais e simbólicas.”

Num contexto ideológico mais amplo, esta valorização do demótico pelos românticos na sua faceta liberal está relacionada com um novo contrato social que seria necessário implementar. Com o fim do absolutismo régio em 1820 a soberania era transferida do direito divino dos monarcas para o povo e os seus representantes. Neste conceito do povo como fonte do poder político estão as raízes das instituições democráticas.


Luís Alves Carpinteiro | Cabo Não

sexta-feira, 20 de janeiro de 2023

O POMBALISMO E A REVIRADEIRA: UMA CISÃO POLÍTICA E ICONOLÓGICA?


É tradicionalmente denominado como “Viradeira” o período inicial do reinado de Dona Maria I, durante o qual se procede à exoneração da estrutura de poder e rede clientelar do Marquês de Pombal e à reversão das políticas do Pombalismo. A reacção anti-pombalina é desencadeada logo após a aclamação de Dona Maria I, com as primeiras medidas a serem tomadas sob a égide do juiz desembargador José Ricalde Pereira de Castro a 13 de Março de 1777. Dona Maria I nunca perdoara a Pombal a perseguição que movera ao clero e à alta nobreza, particularmente a brutal execução pública dos Távoras. Os efeitos mais imediatos são a quebra do controlo estatal sobre sectores da economia, a extinção de monopólios mercantis e a retoma da influência da Igreja e da alta nobreza sobre o Estado. Mas será que esta cisão política também se refletiu na retratística das figuras do poder?


1. Retratos de Pombal e João VI, de van Loo e de Sequeira


O momento histórico da Reviradeira é ainda relevante quando a 10 de Fevereiro de 1792 o príncipe D. João é nomeado regente devido à doença mental da rainha. Urgia criar novas formas de representação para a promoção da imagem do futuro rei D. João VI. No entanto, tal não se verifica de imediato, como fica patente no retrato do príncipe regente por Domingos Sequeira (1802). Neste caso particular, sendo evidentes os paralelos entre a representação de Pombal por van Loo e a do príncipe regente por Sequeira, não deveria D. João considerar indigno fazer-se representar como um mero valido? Ou estaremos perante o caso de um poderoso valido a ser representado como um rei?


2. O Marquês de Pombal iluminando e reconstruindo Lisboa (van Loo; 1766)


As origens relativamente humildes de Sebastião José de Carvalho e Melo podem chocar com esta representação sumptuosa (Ilustração 2) que apenas faz sentido considerando o poder que o mesmo acumulou em vida. Foi um self-made man sem escrúpulos no contexto de rigidez social do Antigo Regime. Conde de Oeiras em 1759, Marquês de Pombal em 1769, D. José bafejou de títulos e honrarias o seu mais importante ministro. O pintor Louis-Michel van Loo, que serviu na corte espanhola, ficou conhecido pelos seus retratos de aparato de monarcas e nobres, como o retrato que produziu da família real borbónica em 1743 (Ilustração 4)

O retrato de Pombal segue esta tradição (apesar das origens de baixa nobreza do retratado) e foi realizado a duas mãos por van Loo e Claude Joseph Vernet, ilustre pintor de paisagens da época que foi responsável pelos fundos marinhos.

Louis-Michel van Loo ficou encarregue do retrato em si, que levou a cabo com base em esboços enviados a partir de Lisboa por Joaquim António Padrão e o seu discípulo João Silvério Carpinetti (Ilustração 3).


3. Gravura de Padrão e Carpinetti (1762)


A encomenda deveu-se a dois abastados comerciantes beneficiados directamente pelas políticas do Pombalismo, o inglês Gerard Devisme e o suíço David Purry, como forma de agradecimento e elogio à obra do “déspota iluminado”.

O retrato que van Loo lhe dedica, com o nome “O Marquês de Pombal iluminando e reconstruindo Lisboa” é pleno de simbolismos políticos e económicos. O título sugere a evocação de Pombal com um déspota esclarecido, que melhora a sociedade com as suas reformas, baseadas na razão e no Iluminismo. Nele podemos observar um líder progressista e com obra realizada, rodeado de objectos que invocam simultaneamente a reconstrução de Lisboa após o Terramoto de 1755 e o seu imenso poder, advindo das funções desempenhadas como secretário de Estado do Reino de D. José.

As suas vestes aristocráticas denunciam as origens nobres e o estatuto social elevado do retratado. A sua postura corporal é reminiscente de uma tradição traçável ao longo da carreira de van Loo: respeita a regra dos terços, aparecendo Pombal numa posição ampla e desafogada com as pernas estendidas e a mão esquerda a apontar o vasto panorama que se vislumbra nas suas costas.


4. A Família de Filipe V (van Loo; 1743)


O patamar imaginário onde a cena toma lugar está posicionado no centro do rio Tejo, com uma paisagem aproximada àquela que na contemporaneidade um automobilista veria a partir da Ponte 25 de Abril. Trata-se do estuário do rio Tejo, com um vai e vem frenético de barcos e mercadorias no rio (e com eles a prosperidade do reino) e a Lisboa reconstruída por Pombal nas margens.

Com a mão esquerda, o retratado dirige o olhar do espectador para a barra do Tejo, de onde afluem as riquezas do reino em forma de mercadorias (ouro, diamantes, vinho, entre outros) e onde se localiza o seu próprio feudo, o condado de Oeiras.

Os objectos distribuídos pela cena aludem às reformas pombalinas. Na mesa, O rei D. José vê-se “miniaturizado” perante o seu todo-poderoso ministro, numa maqueta da sua estátua equestre na Praça do Comércio. As figuras alegóricas que rodeiam a estátua de D. José I, o comércio, a arte e a indústria, simbolizam estas reformas. Estamos perante o retrato de um quase-rei e de uma das pinturas de maior fôlego da carreira de van Loo.



5. Retrato do Príncipe D. João (Sequeira; 1802)


D. João não nasceu destinado a ser rei. A morte precoce do seu irmão D. José, Príncipe do Brasil, em 1788 com apenas 27 anos e a doença mental da rainha catapultam-no para a regência em 1792. Teria de esperar mais 24 anos para finalmente iniciar o seu reinado, na sequência da morte de Dona Maria I em 1816.

Não é por obra do acaso que D. João é um dos monarcas portugueses do qual restam mais representações: houve uma procura activa pela legitimação perante o seu povo e as casas reais europeias, não apenas decorrente do contexto da sua subida ao poder mas também devido à aparente falta de carisma do governante.

Domingos Sequeira foi nomeado Primeiro Pintor de Câmara e Corte em 1802 e é neste contexto que retrata o príncipe regente. No ano seguinte acumularia o cargo de Mestre de Desenho e Pintura de Dona Carlota Joaquina, fortalecendo os seus laços com a casa real portuguesa.

Na representação de Sequeira (Ilustração 5), D. João porta as vestimentas de um aristocrata, com destaque para o gibão adornado por diversas insígnias. Não exibe no entanto qualquer atributo real, derivado de exercer o poder como regente em nome da rainha Dona Maria I, o que se torna por demais evidente pelo busto desta que o observa a partir da mesa que o ladeia pela esquerda.


6. D. Maria I como fundadora da Biblioteca Nacional (1783-1789)


Com a sua mão direita aponta as suas ferramentas do seu trabalho, os papéis, a pena e o tinteiro, numa evocação da burocracia associada à monarquia absoluta e ao exercício do poder através de decretos reais. É também possível observar vários volumes de livros, relacionados com o conhecimento e com a administração sábia e um pequeno sino, usado para chamar os seus numerosos serventes.

Como plano de fundo, Sequeira vai escolher uma paisagem imaginada que faz lembrar a Roma onde passou os seus anos de estudo e mais tarde viria a falecer, com um obelisco, uma coluna encimada por uma estátua de um guerreiro, um aqueduto e ruínas que evocam a Antiguidade Clássica.


As semelhanças com a obra de van Loo vão para além do formalismo da postura corporal, com objectos simbólicos que se repetem e uma estética que invoca o progresso e o poder. A obra de van Loo e Vermet fundou na pintura portuguesa uma estética de representação do poder difícil de contornar, que se mostrou tão relevante para a representação de estadistas como Pombal como para figuras reinantes.

Apesar da renegação da obra de Pombal, no momento da encomenda de obras de arte a dinastia de Bragança evocava a mesma semiótica de uma Europa em fervilhante mutação ideológica, em que os ideais do Iluminismo e do recrudescente Liberalismo começavam a ganhar força, com efeitos observáveis na representação dos líderes políticos. Se num primeiro momento esta estética serviu a consagração de Pombal como déspota iluminado e reconstrutor de Lisboa, durante a regência de D. João esta foi usada para legitimar o seu poder como futuro rei.


Luís Alves Carpinteiro | Cabo Não

sábado, 14 de janeiro de 2023

A SERENÍSSIMA CASA DE BRAGANÇA E O PAÇO DUCAL DE VILA VIÇOSA

 

As origens da Sereníssima Casa de Bragança remontam ao início da Segunda Dinastia, de Avis ou Joanina. O casamento entre Dom Afonso, filho natural do Rei Dom João I e Dona Brites Pereira, filha única do Condestável Dom Nuno Álvares Pereira, funda uma casa poderosa e de primeiríssima nobreza, unidos pelo sangue à família real. Os senhores desta Casa seriam Duques de Bragança, de Barcelos e de Guimarães, Marqueses de Valença e de Vila Viçosa, Condes de Ourém, Arraiolos, Neiva, Faro, Faria e Penafiel, e Senhores de Monforte, Alegrete, Vila do Conde, Braga, Penela, Alter do Chão e Ilha do Corvo; no final do século XV detinham 50 vilas, cidades e castelos, e mais de um milhar de pequenas povoações de norte a sul do país.


Estátua equestre de D. João IV, rei de Portugal

As doações de terras do Rei e do Condestável formam o património inicial da Casa de Bragança, incluindo Vila Viçosa. O lema da família "Depois de Nós Vós" é simbólico do poderio que esta família granjeia nos assuntos do reino logo desde a sua génese. O Ducado de Bragança é finalmente criado quando o Príncipe Regente D. Pedro, 1º Duque de Coimbra, atribui ao seu meio-irmão D. Afonso, Conde de Barcelos, o título de Duque de Bragança a 30 de Dezembro de 1442. O sucessor de D. Afonso, D. Fernando I, é premiado pelas suas façanhas militares com o cargo de Governador de Ceuta e Marquês de Vila Viçosa, nascendo a relação com esta terra alentejana.



Vista aérea do Paço Ducal de Vila Viçosa (Fonte: SIPA)


A influência da Casa de Bragança decaiu durante o reinado de Dom João II. Dom Fernando II foi acusado de traição e executado às ordens do Príncipe Perfeito em 1483, procedendo-se ao confisco de bens, títulos e terras. Mas a sua proeminência foi restabelecida com a subida ao trono de D. Manuel I mediante um juramento de lealdade à Coroa. Será com Dom Jaime I, quarto Duque de Bragança, que a família estabelece definitivamente o seu centro de poder em Vila Viçosa. Por outro lado, Dom Jaime é condenado a financiar e a liderar a conquista de Azamor (1513), após ter encomendado o assassinato da sua primeira esposa Leonor de Guzmán por suspeitas de infidelidade.


Fresco relativo à conquista de Azamor, no Paço Ducal de Vila Viçosa (Fonte: Foto do autor)


Ao reapossar-se das terras previamente confiscadas, Dom Jaime I inicia em 1501 a edificação de uma sede ducal em Vila Viçosa. São deste período o claustro, a capela e as salas de armaria. Quando o seu filho e sucessor, o humanista Dom Teodósio, herda o Paço considera-o "chãmente obrado" e que tinha "desconversáveis serventias".


Será com este mecenas do Renascimento português que o Paço Ducal ganhará imponência. A ele se deve a bela fachada ao gosto italiano e com 110 metros de comprimento, a fazer lembrar o Palácio Rucellai de Leon Battista Alberti, referência incontornável do Primeiro Renascimento. Os dois primeiros pisos foram concebidos durante a campanha de obras que antecipou o casamento do Infante D. Duarte (filho de D. Manuel I) e Isabel de Bragança (irmã de D. Teodósio) em 1537, quando entre outros convidados receberam a Família Real. É também neste período que floresce uma notável Escola de Música sob a égide dos Duques de Bragança.


Pormenor da fachada principal

Palácio Rucellai em Florença (c. 1460)


A Casa de Bragança subiria ao trono somente em 1640, no contexto da Restauração da Independência face a Espanha, quando o oitavo Duque de Bragança é coroado como Dom João IV. O Paço Ducal de Vila Viçosa passará assim a ser uma entre muitas residências reais espalhadas pelo país, usada primariamente como casa de veraneio, terreno agrícola e para a caça.


O Paço Ducal voltará a ter um momento áureo no reinado de João V, aquando dos casamentos duplos entre as casas reais portuguesa e espanhola, episódio conhecimento como "A Troca das Princesas". Novas campanhas de obras vão dotar o Palácio de melhorias no andar nobre, na cozinha e na capela.


Porta manuelina simbolizando o lema "Depois de Nós Vós". Fonte: Foto do autor


Em meados do século XIX, as até então esporádicas visitas da Família Real tornam-se mais frequentes, sendo o Paço alterado sucessivamente nos reinados de Dom Luís e Dom Carlos, para melhor receber a família e a larga comitiva que os acompanhava durante as suas excursões.


Com a Implantação da República o Paço Ducal de Vila Viçosa encerra as portas, que apenas serão reabertas na década de 1940, já no seguimento da criação da Fundação da Casa de Bragança, por vontade expressa em testamento de Dom Manuel II.


O ramo brasileiro da Casa de Bragança reinaria o Brasil pós-colonial desde a sua independência em 1822 até 1889, aquando da abolição da monarquia naquele país. Durante este período decorreria o fim da escravatura no Brasil (com a Lei Áurea de 13 de Maio de 1888), bem como um crescimento económico e desenvolvimento territorial.


Luís Alves Carpinteiro | Cabo Não