sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

O MITO DE D. PEDRO E D. INÊS: OS TÚMULOS


O amor trágico de D. Pedro I e D. Inês de Castro apelou ao romantismo de várias gerações, colecionando manifestações na literatura e noutras artes, que contribuíram para uma mitificação do episódio histórico. Com o passar do tempo, tornou-se um símbolo intangível de amor perfeito e eterno, não muito diferente no imaginário popular dos ficcionais Romeu e Julieta ou Tristão e Isolda. Contemporaneamente aos acontecimentos, foram produzidos dois objectos artísticos que formaram do mesmo modo a nossa visão do sucedido: falamos claro dos túmulos de D. Pedro e de D. Inês, no Mosteiro de Alcobaça, que estarão em foco nesta segunda parte do artigo em colaboração com a Idade Média POP.


Jacentes de D. Pedro I e D. Inês, nas suas arcas tumulares no Mosteiro de Alcobaça


Os túmulos são das primeiras fontes medievais a alimentar este mito. Na Idade Média, a tumulária foi adquirindo mais monumentalidade ao longo dos séculos, constituindo-se objecto de afirmação de status político e social, mas também de propagação de mitos. Deve ter sido D. Pedro o principal autor intelectual destas obras, com o auxílio provável dos monges de Alcobaça, que tinham acesso através da biblioteca a obras teológicas e iluminuras com iconografias que podem ter inspirado o programa dos túmulos. Segundo Joana Ramôa Melo, investigadora em quem nos baseamos largamente para esta secção do artigo, mesmo no além-morte perpetua-se uma relação de dependência entre marido e mulher. Há uma subordinação da memória de Inês de Castro às intenções de Pedro I, porque é o rei, na sua soberana sapiência, que assim decide. Trata-se, portanto, de um programa iconográfico feminino desenhado por um homem. Contudo, os túmulos são um projecto conjunto e relacionam-se entre si formal, iconográfica e ideologicamente, complementando as leituras um dos outro nas faces correspondentes das arcas.


A simbologia dos túmulos do par tem diversos níveis de leituras, complexas e intricadas. Nas estátuas jacentes, são representados, individualmente, um casal de monarcas, ambos munidos de regalia – a coroa e o manto – e acompanhados de um conjunto de anjos que os amparam na sua viagem pós-morte. No entanto, se, por um lado, D. Pedro é representado muito convencionalmente como um cavaleiro de espada, o jacente de Inês de Castro foge mais à tradição, no sentido em que é retratada como uma cortesã que não lê um livro ou sequer ergue as mãos em oração, como era habitual para as estátuas tumulares femininas da Idade Média portuguesa, mas antes acaricia um colar de pérolas com uma mão enluvada, enquanto a outra segura outra luva. Como é evidente, o atributo da coroa em Inês é extremamente significativo e é mais um passo na sua afirmação, por parte de D. Pedro, como rainha de Portugal.


O programa iconográfico dos túmulos atinge, ao nível das arcas tumulares, mais profundas camadas de significação. O túmulo de D. Pedro tem como temas a infância de São Bartolomeu e o seu martírio nas faces maiores. Nas faces menores estão a Roda da Vida e Fortuna, bem como a representação da Boa Morte. Já o túmulo D. Inês tem representadas a infância e Paixão de Cristo nos faciais maiores, enquanto nos outros ostenta as iconografias do Juízo Final e do Calvário. Percebemos desde logo como as iconografias de cada um dos túmulos têm associações simbólicas entre si, relacionando à infância de São Bartolomeu a infância de Cristo e ao martírio do apóstolo a Paixão de Cristo; por outro lado, o Calvário de D. Inês, cena da morte de Cristo, tem correspondência com a face respectiva no túmulo de D. Pedro. A Boa Morte e o Juízo Final na arca da dama corresponde à Roda da Vida e da Fortuna na arca de D. Pedro.


São de destacar várias características inéditas na tumulária portuguesa medieval feminina do túmulo de D. Inês. A mais fascinante é a escolha de um programa iconográfico cristotélico para um sepulcro feminino, ditando a tradição de que ficavam sempre reservados para mulheres tumuladas temas marianos, de santas mártires ou a da representação da defunta como devota de uma determinada ordem religiosa (a Rainha Santa Isabel é retratada no seu jacente com o hábito das clarissas e a bolsa de peregrina de Santiago). No caso da vida trágica de Inês de Castro, decidiu-se que não haveria melhor metáfora do que a vida de Cristo, um homem que se sacrificou pelos pecados dos outros, tal como Inês se sacrificou por questões políticas que lhe eram transversais. Inês, ou Agnes em latim, significa a pura ou casta. Agnes também é sinónimo de cordeira, tal como Agnus Dei é o cordeiro místico de Deus, símbolo metafórico de Cristo. A Santa Inês ou Agnes, mártir romana e santa patrona das virgens, tem como atributo o cordeiro. O cordeiro, símbolo partilhado entre Santa Agnes e Cristo, é metáfora para a pureza e para o sacrifício, para a remissão dos pecados. A força simbólica de Cristo e do cordeiro imolado no túmulo de Inês fazem, por isso, todo o sentido. Também a integração de membros femininos no conjunto de músicos jubilatórios na arca tumular de Inês é novidade na iconografia medieval portuguesa, e o mesmo acontece com a inclusão de personagens femininas na linha da frente dos selecionados para ir para o Céu na cena do Juízo Final.


Já no túmulo de D. Pedro, além da opção iconográfica pela vida e martírio de São Bartolomeu, seu santo pessoal, é na Roda da Vida e da Fortuna que podemos encontrar mais pormenores que podem ser tão biográficos como aqueles que acabámos de enunciar acima. Realçando que a iconografia da Roda da Vida e da Fortuna não é de fácil interpretação, vamos fazer apenas alguns apontamentos sobre as mesmas. Bem à maneira da mentalidade medieval, ambas as Rodas são uma representação simbólica da concepção dos ciclos da vida, da morte e do destino do ser humano, complementando, portanto, as iconografias do mártir Bartolomeu e da Boa Morte em D. Pedro e da paixão de Cristo, Juízo Final e Calvário em D. Inês. Bem visto, a leitura global destes túmulos tem um sentido moral e universalizante que reflecte sobre o ser humano, a sua luta constante com a tentação e o pecado, a necessidade da sua remissão, a morte e a ressurreição. Na maioria das edículas que compõem as Rodas, é representado um casal que namora, dá a mão, que está entronizado e coroado, que passa por momentos de agonia. Além disso, surge uma referência ao assassinato de D. Inês, apresentando-se aqui D. Inês como vítima de um assassinato cobarde e feroz perpetrado pelos algozes, perseguidos e executados por D. Pedro noutra edícula. O assassinato de Inês e o castigo dos homicidas é incluído neste programa funerário dos túmulos do casal e fica registado visualmente para a posteridade, para que ninguém se olvidasse da vítima, dos culpados e, também, do herói.


Por fim, os túmulos de D. Pedro e D. Inês, como verdadeiros pontos de partida para este mito, fixam-no a partir de variadas ideias: a história de amor do casal, o seu estatuto social e político, a sua espiritualidade e o seu destino. A imagem de Inês, construída por D. Pedro, é clara: Inês é aqui uma rainha de Portugal e passa a estar incluída na história da família real portuguesa como tal, bem como os filhos do casal na lista de infantes portugueses. Inês ganha imagem de dama inocente, quase virginal, como o cordeiro, já que ela foi vítima de intrigas políticas e da paranoia de homens cruéis. Como Cristo, Inês é uma bem-aventurada, uma mártir, um cordeiro que aceita o seu sacrifício e caminha heroicamente para ele. Torna-se, aqui, uma rainha, mas também uma mártir, como Jesus. A sua imagem é glorificada e santificada neste monumento, e a sua linhagem, enquanto membro da família Castro, não é esquecida, mas antes orgulhosamente apresentada no rebordo da caixa. Não conhecemos aqui a personalidade de Inês, mas a imagem que dela se quis deixar para a posteridade e comemorar com um impactante projecto funerário verdadeiramente comunicativo.


A história real de D. Pedro e D. Inês é talvez mais interessante que a do mito: enquanto o mito apresenta a Portugal uma inocente história de amor, o episódio histórico revela-se bem mais complexo e, em muitos pontos, ainda não totalmente resolvido para a historiografia. Monarcas com amantes houve muitos, e D. Pedro certamente teve mais relações com outras mulheres; então porque é que Inês de Castro foi diferente? Segundo o que nos informa a História, parece ter existido, realmente, um grande amor entre Pedro e Inês. O rei desenvolveu uma relação adúltera, gerando descendentes com essa mulher, uma dama que tinha ligações a uma família de largo poder e influência na Península Ibérica. O ambiente político vacilava em Portugal há algum tempo, e a corte e o rei, Afonso IV, viram nos filhos de D. Inês uma ameaça ao processo de sucessão do único varão legítimo que D. Pedro tinha, o infante D. Fernando. Assim, agiram mais para prevenir do que remediar, matando a amante do rei antes que fosse tarde demais – possivelmente, antes que D. Pedro e D. Inês legitimassem esse casamento. No entanto, D. Pedro agiu com as ferramentas que tinha em seu poder, de uma maneira ousada e nunca antes vista em Portugal: antecipou-se e casou, segundo as suas próprias palavras, em segredo com D. Inês; reabilitou e glorificou esta mulher demonizada, fazendo-lhe uma trasladação pública e espetacular; fixou a sua imagem como rainha de Portugal nos túmulos verdadeiramente monumentais de Alcobaça. Tenha sido por amor ou como um acto político de legitimação dos seus filhos bastardos com a Castro, D. Pedro elevou a memória de D. Inês e, radicalmente, proclamou-a – directa ou indirectamente – rainha de Portugal, indo contra as convenções numa época medieval em que as convenções, hierarquias e rituais eram tudo. A história de Pedro e Inês é, por isso, mais estranha que a ficção.



Inês Mineiro Abreu | Idade Média Pop


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