A história de amor entre D. Pedro I e Dona Inês de Castro tornou-se um símbolo de amor perfeito e eterno, uma espécie de Romeu e Julieta à portuguesa. Mas contrariamente às personagens nascidas da mente de Shakespeare, D. Pedro e D. Inês foram pessoas de carne e osso, inseridas num contexto social e político real, tantas vezes negligenciado na hora de distinguir facto e mito. Neste artigo, feito em colaboração com a Idade Média POP, vamos proceder à desconstrução do mito de D. Pedro e D. Inês, analisando as suas circunstâncias na corte portuguesa de meados do século XIV.
Pintura romântica sobre o mito de D. Pedro e D. Inês, por Columbano Bordalo Pinheiro |
Toda a gente sabe esta história: no tempo dos reis, D. Pedro I, um monarca cruel e justiceiro, apaixonou-se enquanto príncipe por uma dama galega chamada D. Inês de Castro. Adúltero, o casal viveu em pecado após a morte da mulher de D. Pedro e teve quatro filhos, causando o escândalo geral e a fúria do rei pai, D. Afonso IV, que manda executar brutalmente Inês diante das suas crias. O louco e apaixonado Pedro, cego de dor e doente de coração partido, guerreia contra o pai; quando sobe ao trono, manda perseguir os algozes executores de Inês e, por fim, faz à sua amada a mais bonita homenagem de sempre, coroando-a como rainha de Portugal e fazendo toda a população beijar a mão do seu corpo morto. Esta é a história do Romeu e Julieta portugueses. Fim.
Apesar do protagonismo de Inês de Castro num dos mais populares mitos do imaginário português, pouco se sabe sobre a personalidade, pensamento e intenções. Muito menos sobre a sua voz: por cima dela falaram os actos de D. Pedro, a concepção dos seus túmulos, a documentação coeva, as fontes literárias medievais, modernas e contemporâneas, que a mitificaram, bem como toda a arte que foi produzida inspirada nesta história. Inês de Castro não tem agência sobre a narrativa que dela ficou, e se a teve nos eventos históricos em que participou, não o sabemos. Tal como tantas outras personagens históricas femininas da Idade Média, a história que de D. Inês ficou, permanece marcada pela aparente passividade e perda de autonomia, ao contrário dos homens envolvidos nesta história, os agentes, que assumiram controlo das acções e decisões. O seu destino é decidido pelos outros – Inês é mandada para lá, trazida para cá, assassinada, trasladada, aclamada rainha. A sua voz e vontade são excluídas na narrativa, tal como a história das mulheres em geral. Apesar de ser uma história a dois, o mito de Pedro e Inês nunca foi sobre ambos; Inês é apenas um dispositivo narrativo num mito que pretende a promoção de um rei e a legitimação da sua descendência.
Inês de Castro era aia e dama de honor da castelhana D. Constança Manuel, que chegaria ao reino português para se casar com o infante D. Pedro. É difícil precisar o início da relação entre Pedro e Inês e se a mesma se inicia antes ou após a viuvez do infante, mas há dados que parecem apontar para que ambos já se conhecessem antes da chegada de D. Constança a Portugal. O príncipe e a dama galega levam vida de marido e mulher, contrariando todas as regras societais e cristãs de matrimónio, ainda mais rígidas para membros da realeza. Os princípios judaico-cristãos da sociedade em que viviam, que condenava agressivamente o adultério, não ajudariam o caso de Pedro e Inês. A relação pode não ter sido discreta o suficiente para ficar desconhecida do público e da corte, constituindo uma provocação à moralidade e políticas da sociedade medieval portuguesa.
Inês de Castro era filha de D. Pedro Fernandes de Castro, homem de grande destaque político em Castela, mordomo-mor de Afonso XI e primo direito de D. Pedro I, com quem cresce em Portugal. Inês de Castro e Pedro I de Portugal seriam, portanto, primos segundos, outro dos argumentos daqueles que se opuseram a esta relação. Adicionalmente a ser membro de uma das famílias mais poderosas da Hispânia, Inês foi criada pelo senhor de Albuquerque, Afonso Sanches, meio-irmão rival de Afonso IV de Portugal. Além disso, também existem ligações biográficas da dama galega com Diogo Lopes Pacheco através da sua mãe adoptiva, Teresa Sanches. Parte da biografia de Afonso IV é precisamente marcada, enquanto infante, pela predilecção de seu pai, D. Dinis, pelo filho bastardo Afonso Sanches e, depois, pela disputa entre Afonso IV e o meio-irmão pelo trono, conduzindo uma guerra civil encabeçada contra o próprio pai. No seio deste conflito, os Castro posicionaram-se também a favor de Afonso Sanches. Ironicamente, o reinado de Afonso IV terminaria como começou.
Estas informações ajudam a perceber bem como as ligações familiares de Inês, e não apenas o crime do adultério, podem ter fomentado a paranoia do rei português e dos seus conselheiros em relação à união da dama com o príncipe. O nascimento dos filhos do casal despertou alarmes na corte e em Afonso IV, que também havia disputado a sucessão ao trono com um irmão bastardo. Estes filhos ilegítimos podiam originar uma futura crise sucessória e pôr em causa a independência portuguesa. Assim, a história de amor entre Pedro e Inês, que existiu, prova-se uma verdadeira questão de Estado. Os Castro eram uma ameaça e Inês era a serpente sedutora que levaria o príncipe a cair na tentação.
Em 1355, a história de Pedro e Inês atinge o clímax. A 7 de Janeiro desse ano, Afonso IV reage à pressão da corte e ordena o assassinato de Inês de Castro. Segundo o Livro da Noa de Santa Cruz de Coimbra, Inês foi degolada, embora alguns autores literários do século XVI, como Camões, narrem a morte de Inês por esfaqueamento no abdómen. A lenda retrata D. Pedro como um homem sedento de vingança pela perda da sua amada e a documentação histórica parece confirmar isso mesmo. O príncipe inicia uma devastadora guerra civil contra o pai, assinando ambos depois um tratado de paz a 15 de Agosto de 1356. Quando Afonso IV morre e D. Pedro finalmente sobe ao trono em 1357, o novo rei, rancoroso, ordena a execução dos três homicidas da Castro, desfazendo aquilo que tinha sido celebrado no acordo de paz com o seu pai. Fernão Lopes, cronista que lança uma série de obras biográficas sobre os monarcas da primeira dinastia portuguesa, procurando legitimar os da Ínclita Geração, relata a particular violência deste episódio na Crónica de D. Pedro: “(...)e el-rrei dizendo que lhe trouxessem cebolla e vinagre pera o coelho, (...). A maneira de sua orte (...) seria mui estranha e crua de cobtar, ca mandou tirar o coraçom pelos peitos a Pero Coelho, e a Alvoro Gonçallvez pelas espadoas; (...). Enfim mandou-hos queimar: (...) Muito perdeo el-rrei de sua boa fama por tal escambo como este, (...)”.
Quando D. Pedro se torna rei, assume as rédeas da construção deste mito. Em 1360, o monarca faz um juramento público na igreja de Cantanhede, registado em diploma oficial, na presença de vários bispos e outras personagens de alta relevância política, afirmando que tinha casado em segredo há sete anos “per palavras de presente assi como manda a Sancta Egreja Donna Enes de Crasto” e “fazendo se maridança pela guisa que deviam”. Dava assim o primeiro passo de legitimação do casamento com Inês e dos descendentes desta união, um acto verdadeiramente radical e inédito de aclamação póstuma de uma rainha.
Há algumas dúvidas por parte da historiografia e mesmo pelos autores de fontes medievais, como Fernão Lopes, acerca deste casamento. Não é surpreendente que Fernão Lopes, que escreve a crónica de D. Pedro com o objectivo de procurar justificar D. João I como legítimo sucessor ao trono e fundador da segunda dinastia portuguesa, se mostre também hesitante em aceitar o casamento do rei com D. Inês. Há outra documentação, embora saída da casa real portuguesa e, por isso, tendenciosa, que refere Inês de Castro e os seus filhos, como legítima mulher e infantes, respectivamente.
Citamos aqui um documento da Chancelaria de 1358, em que se diz: “(...) e como seia nosso propósito e entençom de nos mandar hi deitar e dona Jnes de Castro nossa molher e nosso filhos (...)". No segundo testamento de D. Beatriz, em 1357, a rainha já nomeia os filhos de Inês de Castro como infantes. Também no testamento de D. Pedro I, de 1367, o mesmo é reafirmado: “(...) Item mandamos que entreguem aos filhos da Infante Donna Ignez, que outro si foi nossa mulher (...)”.
Provavelmente em 1361 ou 1362, D. Pedro dá um segundo importante passo na criação deste mito, buscando uma reabilitação da memória e imagem de Inês de Castro através de uma trasladação espectacular e pública que actua como uma reencenação das exéquias fúnebres da dama, também relatada por Fernão Lopes: “mais homrrada trelladaçom, que ataa aquel tempo em Purtugal fora vista”. O corpo de Inês foi trazido do Convento de Santa Clara, onde estava sepultado, para o de Alcobaça, numa longa procissão que inundou o caminho de gentes e círios. Mais uma vez, o rei assume controlo sobre a história, o legado desta relação e da sua amada. O tétrico beija-mão do cadáver de D. Inês é apenas uma lenda, porém, a realidade do que aconteceu não foi menos interessante do que isso.
Num último grande gesto público e pensado para a posteridade, D. Pedro, como primeiro grande impulsionador deste mito, decide um novo local de sepultamento e túmulo para D. Inês, segundo o seu próprio projecto de legitimação e afirmação política. O local escolhido é uma decisão cheia de significado: o mosteiro de Alcobaça, uma das mais prestigiantes casas monásticas e panteões régios do país. Para lá, o rei encomenda duas arcas monumentais para si e para Inês, pensadas como um projecto conjunto. Esta seria a última tentativa – e bem-sucedida – de glorificação e recuperação da boa memória de Inês, mas também de legitimação deste casal. Inédito foi também o facto de os túmulos não ocuparem o mesmo espaço que os restantes túmulos reais de Alcobaça teriam tido, na galilé; estes túmulos ficariam no mais privilegiado local do mosteiro – o braço Sul do transepto da igreja – sendo a primeira pessoa sepultada dentro da igreja de Alcobaça uma mulher, Inês de Castro.
Provavelmente em 1361 ou 1362, D. Pedro dá um segundo importante passo na criação deste mito, buscando uma reabilitação da memória e imagem de Inês de Castro através de uma trasladação espectacular e pública que actua como uma reencenação das exéquias fúnebres da dama, também relatada por Fernão Lopes: “mais homrrada trelladaçom, que ataa aquel tempo em Purtugal fora vista”. O corpo de Inês foi trazido do Convento de Santa Clara, onde estava sepultado, para o de Alcobaça, numa longa procissão que inundou o caminho de gentes e círios. Mais uma vez, o rei assume controlo sobre a história, o legado desta relação e da sua amada. O tétrico beija-mão do cadáver de D. Inês é apenas uma lenda, porém, a realidade do que aconteceu não foi menos interessante do que isso.
Num último grande gesto público e pensado para a posteridade, D. Pedro, como primeiro grande impulsionador deste mito, decide um novo local de sepultamento e túmulo para D. Inês, segundo o seu próprio projecto de legitimação e afirmação política. O local escolhido é uma decisão cheia de significado: o mosteiro de Alcobaça, uma das mais prestigiantes casas monásticas e panteões régios do país. Para lá, o rei encomenda duas arcas monumentais para si e para Inês, pensadas como um projecto conjunto. Esta seria a última tentativa – e bem-sucedida – de glorificação e recuperação da boa memória de Inês, mas também de legitimação deste casal. Inédito foi também o facto de os túmulos não ocuparem o mesmo espaço que os restantes túmulos reais de Alcobaça teriam tido, na galilé; estes túmulos ficariam no mais privilegiado local do mosteiro – o braço Sul do transepto da igreja – sendo a primeira pessoa sepultada dentro da igreja de Alcobaça uma mulher, Inês de Castro.
Inês Mineiro Abreu | Idade Média POP
Nota: A segunda parte deste artigo sai no dia 4 de Dezembro de 2020.
A história deste amor proibido e trágico, o seu princípio e fim, a lenda e o romance que o rodeiam são sobejamente conhecidos. No entanto, de Inês pouco se sabe. Não fora a tragédia que envolveu a sua morte e as ações de Pedro após o seu assassinato e Inês não passaria de uma das muitas mancebas que perpassaram pela vida dos reis medievais, posteriormente esquecida como as outras o foram.
ResponderEliminarPorque investiguei bastante este par de amantes, bem como as objeções colocadas por Fernão Lopes a esta união, quero aqui deixar alguns pontos importantes. A realização deste casamento, bem como a sua validade, tem sido alvo de controvérsia desde o século XV, começando logo com os cronistas que escreveram sobre este período. Se para Rui de Pina é ponto assente que Pedro e Inês casaram, já Fernão Lopes considera pouco provável, desacreditando as próprias palavras do rei. Cabe aqui relembrar que, à luz da Idade Média, o casamento era considerado realizado e válido desde que os noivos pronunciassem, entre si e sob juramento, as chamadas "palavras de presente": "Recebo-te por minha; recebo-te por meu". Não era sequer necessária a presença de testemunhas e bastava que os cônjuges declarassem que o haviam feito. Ora neste caso, o bispo da Guarda, D. Gil, e Estevão Lobato, criado do rei, afirmaram ter sido testemunhas desta união. Não existem razões para negar o depoimento jurado sobre os Evangelhos por um bispo, aliás em concordância com as também juras de D. Pedro e de uma testemunha comum. Fernão Lopes, para além da sua dúvida (por certo, intencional), omite documentos que confirmam este ato, ou que o pressupõem, como são a carta de D. Pedro ao Mosteiro de Alcobaça, o testamento de D. Beatriz, o sermão das exéquias de Inês proferido pelo arcebispo de Braga, o maior poder espiritual do reino, e o próprio testamento de D. Pedro. Mesmo os impedimentos de consanguinidade e compadrio salientados por Fernão Lopes foram já refutados e desmistificados. O saudoso historiador Oliveira Marques refere que Fernão Lopes desencorajou toda e qualquer vontade de acreditar neste casamento, pois, interessado em negar a legitimidade dos filhos de Inês, faz o leitor duvidar da realização do mesmo. Este historiador acrescenta que as várias doações de património aos infantes filhos de Inês foram feitas em diplomas datados de 1361, a seguir à declaração de legitimidade, portanto num processo lógico de encadeamento dos acontecimentos.
Se nunca iremos saber se este matrimónio terá, ou não, ocorrido, a verdade é que, ao declarar ter casado com Inês, o monarca honrou a memória daquela que fora sua mulher de facto, legitimou os filhos nascidos desse amor e colocou-os em pé de igualdade na sucessão ao trono com o infante Fernando, havido de D. Constança. A única diferença era que este era o primogénito, pelo que seria sempre o primeiro a herdar a governança do reino.
Citando Fernão Lopes, este amor de Pedro e Inês foi um "verdadeiro amor raramente achado nalguma pessoa" e exemplo de "verdade" que ultrapassa "os que se contam e leem nas histórias".
Ana Rodrigues Oliveira, "O Amor em Portugal na Idade Média", Ed. Manuscrito, Fev. 2020.
Felizmente o Concílio de Trento condenou os casamentos clandestinos.
EliminarPode-se então concluir que a razão essencial do assassinio de D. Inês de Castro foi razão de Estado, ou seja, evitar problemas de herança ao trono futuramente,...Por ironia, esses problemas vieram mesmo a acontecer depois da morte de D. Fernando. E aqui temos que considerar quer as "interpretações jurídicas" de João das Regras, e as crónicas de fernão Lopes como tentando garantir a independência de Portugal perante castela.....
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