quinta-feira, 11 de junho de 2020

TRATADO DE TORDESILHAS: A DIVISÃO DO MUNDO


No passado dia 7 de Junho assinalaram-se os 526 anos sobre o Tratado de Tordesilhas, celebrado em 1494 entre as Coroas de Portugal e Castela, com o intuito de dividir entre as duas potências imperiais emergentes as terras "descobertas e por descobrir".




ANTECEDENTES

Após a morte de D. Afonso V, em 1481, D. João vai suceder-lhe definitivamente. Entronizado como D. João II, aquele que chamaram "Príncipe Perfeito", vai revelar desde cedo o desígnio de retomar a doutrina de exploração atlântica iniciada pelo seu tio-avô, o Infante D. Henrique.

Após um início turbulento de reinado com conspirações na corte e atentados à sua pessoa, o rei vai centralizar o seu poder através da  eliminação física dos seus inimigos. O Duque de Bragança D. Fernando é executado em 1483; D. Diogo, Duque de Viseu, seu primo e cunhado, é apunhalado pelo próprio monarca; por fim o Bispo de Évora, Garcia de Meneses, é envenenado após um temporada no cárcere.

Estas implacáveis demonstrações de poder criam rumores acerca da  personalidade tenebrosa do rei, que quando questionado acerca dos seus métodos violentos, não teve problema em justificar-se deste modo: "eu sou o senhor dos senhores, não o servo dos servos."


D. João II, como retratado na Sala dos Reis da Quinta da Regaleira 

Com a nobreza domesticada e o seu poder consolidado, o rei pode finalmente dar início ao plano de expansão territorial e económica através de descobertas marítimas, sendo o feito mais notável do seu reinado a dobra do Cabo da Boa Esperança pelo navegador Bartolomeu Dias em 1488.

A centralidade deste acontecimento tantas vezes menosprezado pela historiografia europeia é incomensurável: pôs fim a mil anos de monopólio da Rota da Seda nas trocas eurasiáticas e colocou a chave da hegemonia mundial na mão dos europeus. Cá entre nós, lançou as bases para a descoberta do Caminho Marítimo para a Índia por Vasco da Gama, que se seguiria em 1498, já no reinado manuelino.


UM TRATADO PARA DIVIDIR O MUNDO

Com a chegada de Cristóvão Colombo às Antilhas, em 1492, a necessidade de um entendimento entre Portugal e Castela é agravada. Colombo anuncia ter encontrado uma rota alternativa para o Índico através de Ocidente, ameaçando assim o monopólio português daqueles mares. Como hoje sabemos, Colombo tinha na realidade alcançado o continente americano, sendo o cobiçado percurso por Ocidente conquistado pelos espanhóis muito mais tarde, por intermédio do português Fernão de Magalhães.

Quando D. João evoca os termos do Tratado da Alcáçovas (1479) para reclamar para si as terras descobertas por Colombo, os Reis Católicos pedem a intervenção papal para sanar o diferendo. Em 1493 o Papa Alexandre VI emite a bula Inter Coetera na qual estabelece um meridiano 100 léguas a oeste do arquipélago de Cabo Verde como linha divisória entre as possessões a descobrir por portugueses e espanhóis. A proposta da Santa Sé não serve ao rei de Portugal, que no ano seguinte vai procurar encetar conversações directamente com os seus homólogos espanhóis.

Em 1494 as representações diplomáticas das duas Coroas vão finalmente sentar-se à mesa, na povoação castelhana de Tordesilhas, com o objectivo mais ambicioso que um tratado entre duas potências tivera até então: proceder à divisão bipolar do mundo por descobrir.


A Rainha Isabel, a Católica, e o Papa Alexandre VI:
dois dos principais intervenientes no Tratado de Tordesilhas
 

Perante a insistência do rei de Portugal, o meridiano traçado pela bula Inter Coetera é empurrado para 370 léguas a oeste das ilhas de Cabo Verde. Todos os territórios a leste deste meridiano ficariam sobre a alçada de Portugal, enquanto todos os territórios a oeste pertenceriam a Castela. Naquela época, em que os cosmógrafos ainda divergiam sobre as dimensões da Terra, uma demarcação deste género era extremamente difícil de verificar. Sabemos hoje que o Tratado de Tordesilhas foi largamente favorável para o lado português. 


Numa jogada exímia o Príncipe Perfeito não apenas meteu um pé no continente americano, obtendo direitos sobre o inexplorado Brasil, mas também assegurou o monopólio da Rota do Cabo para a navegação portuguesa. O tratado impunha ainda a doutrina do Mare Clausum às outras nações, segundo a qual as potências ibéricas obtinham exclusividade sobre os mares descobertos.


O Planisfério de Cantino (1502) é uma das mais antigas cartas
onde figuram a linha de Tordesilhas e a costa brasileira

INTERPRETAÇÕES E CONSEQUÊNCIAS

Há quem sugira que a astúcia do Príncipe Perfeito foi motivada pelo seu conhecimento prévio da localização da costa do Brasil, oficialmente descoberto por Pedro Álvares Cabral seis anos após a assinatura deste tratado. Não existe todavia qualquer fonte que substancie estas conjecturas.

Sabemos porém que foi por volta desta época que os portugueses começaram a aplicar a técnica náutica denominada volta do mar largo, que envolvia a navegação ao largo por oposição à navegação costeira até então praticada. Deste modo a obstinação de D. João em empurrar o meridiano mais para oeste pode ter sido para possibilitar a execução da volta do mar largo, sem entrar em águas territoriais espanholas. Sabemos também que a aplicação desta técnica é a justificação oficial para a Descoberta do Brasil, a muitas vezes contestada teoria do "achamento". 

O tratado garante a Portugal o domínio incontestado do Atlântico Sul, o que permitiria a Vasco da Gama concluir sem perturbações o Caminho Marítimo para a Índia em Maio de 1498. É também este tratado que confere a Portugal a legitimidade para se estabelecer no Brasil, depois da chegada de Pedro Álvares Cabral a Porto Seguro, a 22 de Abril de 1500.


A partilha bilateral do mundo entre portugueses e espanhóis não tardaria a ser contestada por outras potências europeias, impacientes por molhar o bico nas riquezas coloniais. Francisco I de França celebremente terá ironizado: "Quero ver a cláusula do testamento de Adão que me exclui da partilha do mundo". 

Outra consequência de Tordesilhas foi o florescer da pirataria e do contrabando, soluções encontradas pelas nações despeitadas para aceder à prosperidade das Américas que lhes era vedada. No decurso dos séculos seguintes os corsários dos estados contestatários do tratado vão depredar as costas do Brasil português, bem como as rotas espanholas.

A doutrina do Mare Clausum seria refutada em 1609 pelo jurista holandês Hugo Grotius na sua obra Mare Liberum, onde defendeu a livre-circulação e livre-comércio em águas internacionais como um direito transversal a todas as nações. Os holandeses desobrigavam-se assim do entendimento ibérico de Tordesilhas e tomariam de assalto várias colónias portuguesas naquela que ficou conhecida como a Guerra Luso-Holandesa (1601-1663). 

Mais tarde seriam os próprios portugueses a desobedecer aos limites impostos pelo tratado ao expandirem o Brasil muito para lá da fronteira estabelecida. Os colonos portugueses chegaram mesmo a assentar uma fortaleza na margem esquerda do rio da Prata, a Colónia do Sacramento, situado no que é actualmente o estado moderno do Uruguai.

A fixação portuguesa em território oficialmente espanhol gerou escaramuças fronteiriças constantes, que só cessaram com o Tratado de Madrid de 1750 e consequente definição das fronteiras entre possessões ibéricas no subcontinente sul americano. Finada a vida útil do Tratado de Tordesilhas, o seu substituto consagrou o princípio de direito romano do uti possidetis, ita possideatis (quem possui de facto, deve possuir de direito), delineando os contornos aproximados do Brasil dos nossos dias. 



Luís Carpinteiro e Francisco Caldas | Cabo Não


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