Até recentemente, esta obra do pintor de corte Garcia Fernandes (1514-1565) foi interpretada como uma representação do casamento entre D. Manuel I e Leonor de Áustria, que teve lugar no ano de 1518. Esta foi persistentemente utilizada em livros escolares e programas televisivos como a imagem do rei Venturoso, descrito em crónica como "de grandes braços, cabelo com franja e barba densa". Em 1998, o historiador Joaquim Caetano, atualmente Diretor do Museu Nacional de Arte Antiga, veio contestar essa teoria afirmando que se tratava antes de uma cena da hagiografia de Santo Aleixo.
Diversas incongruências chamaram a atenção do historiador Joaquim Oliveira Caetano, que em 1998 apresentou nova leitura da obra. De facto, não é plausível que uma pintura com estas características fosse encomendada 23 anos após o casamento, tendo o monarca já falecido. Além do mais, o rei desde 1521 era D. João III a quem Leonor estivera prometida antes de desposar o pai. Em 1530, a arquiduquesa casara em segundas núpcias com o rei de França, Francisco I de Valois, tornando a representação do casamento prévio ainda mais inverosímil. Acresce o pormenor de o monarca não ostentar a insígnia da Ordem do Tosão de Ouro, que lhe foi conferida por intermédio do casamento com D. Leonor.
Joaquim Caetano apontou que de acordo com os cânones impostos pelo Concílio de Trento, seria de estranhar uma obra de temática profana ser inserida num espaço sagrado (Igreja da Misericórdia). Foi descoberta documentação que comprova a existência de uma Confraria de Santo Aleixo e sabemos que em 1538 foi agregada à Igreja da Misericórdia uma "confraria de caridade". Partindo do pressuposto que esta "confraria" é a de Santo Aleixo, faria todo o sentido a encomenda a Garcia Fernandes (que era Eleitor da Misericórdia de Lisboa) de uma pintura dedicada a um dos episódios da hagiografia do santo; neste caso o seu casamento forçado com Sabina.
Mais consenso reúne porém a representação de D. Álvaro da Costa, armeiro-mor do Reino e primeiro provedor da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa: a figura à esquerda envergando uma túnica com a cruz de Cristo. Foi possível identificá-lo através da inscrição que se encontra desenhada na margem das suas vestes. O seu posicionamento em evidência no plano e os seus atributos mais singularizados sugerem-nos que é o encomendador da obra.
Álvaro da Costa no Casamento de Santo Aleixo |
Quanto a figurações artísticas do próprio monarca estas não foram de todo incomuns, sendo a sua representação mais objetiva a escultura que pode ser visitada no Mosteiro dos Jerónimos. Vestiu por mais do que uma vez a pele de Rei Mago, no Retábulo do Mestre dos Reis Magos (Museu Nacional de Arte Antiga) ou numa Adoração dos Magos atribuída a Gregório Lopes. Está presente na Fons Vitae do Museu da Misericórdia do Porto, provavelmente encomendada pelo próprio, onde está representado lado a lado com a sua segunda esposa, Maria de Aragão e Castela, em veneração de Cristo crucificado.
Fons Vitae (c. 1515-1517), pintura flamenga atribuída a Colijn de Coter ou a Bernaert von Orley |
O Casamento de Santo Aleixo é não obstante uma obra maior do Renascimento português que se encontra actualmente em exposição no Museu de São Roque da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. A sua abordagem iconográfica invulgar confere-lhe um carácter único, uma vez que este santo romano é quase sempre representado como um pobre pedinte, no leito do morte ou, já cadáver, segurando a carta em que o Papa Bonifácio I ordena a sua canonização. A evocação de Santo Aleixo neste contexto pretende eventualmente transmitir uma alegoria à fundação das Misericórdias, com as quais tanto pintor como encomendador estavam relacionados.
Luís Alves Carpinteiro | Cabo Não
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