quinta-feira, 17 de outubro de 2019

CIRCUM-NAVEGAÇÃO DE MAGALHÃES: PORTUGUESA OU ESPANHOLA?


Gravura de Magalhães (1598, Royal Museums Greenwich)


Há 500 anos, no dia 20 de Setembro de 1519, zarpava de Sanlúcar de Barrameda uma frota de cinco navios com uma tripulação de aproximadamente 240 homens capitaneada por Fernão de Magalhães. A missão era atingir por ocidente as Molucas (Ilhas das Especiarias), terra de riquezas lendárias e único produtor mundial de cravinho. A expedição seria porém assombrada por rebeliões e imprevistos, culminando estes com a morte de Magalhães na ilha de Mactão a 27 de Abril de 1521, às mãos de tribos nativas.

Magalhães era um fidalgo oriundo da baixa nobreza do norte de Portugal. Com somente 24 anos integrara a soldadesca que partira a 25 de Março de 1505 de Lisboa na primeira esquadra lançada por Portugal para dominar o Índico, liderada por Francisco de Almeida.

É neste contexto que adquire experiência e participa em eventos como a batalha de Cananor (1506) ou a conquista de Malaca (1511). Toma conhecimento da riqueza das Ilhas Molucas, provavelmente através do amigo Francisco Serrão, com quem se corresponde frequentemente.

Caberia ao basco Sebastião Elcano completar a gesta iniciada por Magalhães e no processo a primeira volta ao mundo, quando três anos após a partida aporta em Sevilha uma única nau com uma tripulação doente e irreconhecível de apenas 18 homens.

Desde 2016 que a "Rota de Magalhães - Primeira Volta ao Mundo" consta na lista indicativa de Portugal ao Património Mundial da UNESCO. A candidatura portuguesa causou desconforto entre alguma opinião espanhola e no início de 2019 o periódico ABC acusa Portugal de "falsear a História" ao tentar reclamar louros de uma viagem que alegam "se fez não graças a Portugal, mas apesar de Portugal".

O presente trabalho pretende contribuir para este debate com a elaboração de algumas perguntas e respostas que podem esclarecer quanto a uma autoria cultural da empresa, como a proveniência dos conhecimentos e tecnologias que a possibilitaram ou a nacionalidade dos seus tripulantes.




1. Como foi adquirido o know-how?


"Fernão de Magalhães esteve quase quatro décadas em Portugal, onde aprendeu toda a arte que lhe permitiu concretizar essa grande viagem." Manuela Mendonça, Presidente da Academia Portuguesa de História

Magalhães teve uma carreira militar de mais de uma década ao serviço do rei de Portugal que lhe permitiu viajar até à Índia, participar na conquista de Malaca e travar conhecimento das Ilhas das Especiarias. Os astrónomos e cartógrafos irmãos Faleiro, cujo contributo para o planeamento foi decisivo, eram igualmente portugueses.


"Partida de Sevilha" de Theodor de Bry (1594)


2. Como foi adquirido o financiamento?

Três quartos da despesa da viagem foram suportados pelo Sacro Imperador e Rei de Espanha, Carlos V. Não são negligenciáveis as contribuições de privados como a do representante dos Fugger em Lisboa, Cristovão de Haro. Para além de ter fornecido directamente os fundos que financiaram um quarto da despesa da viagem foi igualmente responsável pela negociação de um empréstimo com juros altos à coroa espanhola, sem o qual a empresa não teria sido possível. Como atesta Stefan Zweig "Aparece por esses dias, em Sevilha, inesperadamente o célebre armador Cristovão de Haro, o rico especulador da Flandres, que trabalha com todo o capital internacional da sua época, conjuntamente com os Welser, os Fugger e os venezianos e já mandara uma série de expedições à sua custa. Até então fixara-se especialmente em Lisboa." (...) " Conhece Magalhães, deposita confiança nele, considera de mais a mais, a empresa como prometedora de êxito e assegura-lhe estar pronto a financiar a expedição, juntamente com os seus amigos negociantes" (ZWEIG, 1938).



"Descoberta do Estreito de Magalhães" de Theodor de Bry (1594)


3. Que grupos culturais tripulavam a expedição?

A tripulação inicial de cerca de 240 era multi-cultural e multi-étnica, incluindo homens originários dos países que são actualmente Portugal, Espanha, Itália, Alemanha, Bélgica, Grécia, Inglaterra, França, etc. Receoso das intenções de Magalhães, o rei de Espanha substituiu uma tripulação maioritariamente portuguesa por uma maioria espanhola; deste modo quando a expedição partiu estavam nela aproximadamente 40 portugueses, uma representação consideravelmente menor do que a presente na tripulação original. Como José Manuel Garcia referiu ao Diário de Notícias "Fernão de Magalhães foi acompanhado por 239 homens de seis nacionalidades diferentes. 10% eram portugueses, entre eles alguns dos responsáveis principais" (GARCIA, 2019).


Magalhães e Elcano lado a lado em azulejo comemorativo em Sanlúcar de Barrameda 


4. Como foi percepcionada a viagem em Portugal?

Os objectivos da viagem foram contrários aos interesses do Reino de Portugal, que já em 1512 estabelecera feitoria no arquipélago que os espanhóis pretendiam alcançar, nomeadamente na Ilha de Ternate. Defendendo os seus interesses no trato das especiarias, Portugal fez tentativas de sabotar a viagem desde o início, chegando a apresar a Nau Trinidad ou a capturar alguns dos seus tripulantes em Cabo Verde, que ficariam ali detidos durante largos anos. Em entrevista ao Diário de Notícias José Manuel Garcia menciona que "o rei D. Manuel quando soube que o Fernão de Magalhães começou a viagem, mandou uma armada de cinco navios para a Índia, destinados a dar cabo dele, se o encontrassem nas Molucas" (Idem).


O exemplo mais bem documentado é o de Sebastião Álvares, enviado de Dom Manuel que tentou a todo o custo evitar a partida da expedição. Nas palavras de Stefan Zweig "A parte principal na secreta sabotagem da esquadra é distribuída de Lisboa a Sebastião Álvares, cônsul português em Sevilha. Este espião-funcionário circula sempre em torno dos navios, observa e toma nota de cada carregamento que vem para bordo" (ZWEIG, 1938). As suas acções destinavam-se a sabotar a viagem, semear a discórdia entre os marinheiros e persuadir ou coagir Magalhães a retornar a Portugal, o que tentou alcançar por diversos meios sem sucesso.


LAC

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