sexta-feira, 9 de junho de 2017

O MUNDO FLUTUANTE


O Japão do período Edo possuía zonas delimitadas nas quais a prostituição era permitida. No entanto, estas áreas marginais não se limitavam a estas práticas; era também centros de intenso intercâmbio cultural e foram o berço de alguns dos mais modernos movimentos artísticos do Japão. Ficariam conhecidos para a posteridade como os yukaku, entre os quais Yoshiwara em Edo, Shimabara em Quioto e Shinmachi em Osaka, serão talvez os exemplos mais paradigmáticos. Foram verdadeiramente os palcos do mundo flutuante e uma das temáticas mais recorrentes deste movimento artístico. São cenários comuns em peças de kabuki e foram imortalizados nas pranchas de ukiyo-e e na literatura popular. O fascínio que a sua estética singular provocou na sociedade japonesa fez com se tornassem os epicentros da moda cortesã, liderando as tendências.
Durante a época dos Tokugawa, o bairro de Yoshiwara foi o maior e o mais proeminente destes bairros. Foi inicialmente construído na zona atualmente designada como Nihonbashi. O seu principal impulsionador foi Shôji Jin'emon, que obteve uma licença do shogunato no ano de 1617, com o intuito que concentrar todos os bordéis da cidade numa única área. Abrindo portas no ano seguinte, foi inicialmente denominado como Ashihara, cuja tradução literal é “campos dos juncos” e significa “campo do mal”. Mais tarde, Jin’emon atribui-lhe o nome pelo qual o conhecemos hoje: Yoshiwara (“campo da sorte”). A cultura popular foi prolífica em atribuir-lhe designações eufemísticas: Geppon (“A terra da lua nascente”), Karyûkai (“mundo das flores e dos salgueiros”, Fuyajô (“castelo sem noite”), entre outras. A partir de 1626, os escassos remanescentes estabelecimentos autorizados de Sumichô foram recolocados em Yoshiwara, pelo que o seu monopólio se tornou absoluto.


"Spring Scene at Naka-no-chô in the New Yoshiwara"; Gravura Ukiyo-e de Utagawa Hiroshige.

Em 1657, as labaredas do Grande Incêndio de Meireki consumiram aproximadamente dois terços da capital imperial. Yoshiwara encontrava-se numa das áreas totalmente arrasadas pelo cataclismo, pelo que foi estabelecida nova localização numa zona mais marginal a norte de Asakusa, onde se mantem até hoje.
Os bordéis e as casas de chá estendiam-se ao longo de quatro ruas, rodeadas por altas muralhas de gesso e eram acessíveis apenas por um único portão, o sobrevivente Yoshiwara-Ômon. A entrada com armas era interdita assim como as cavalgaduras e as liteiras, excetuando em casos de prestação de socorro. No ambiente boémio do mizo-shobai (eufemismo japonês para a vida noturna) era frequente encontrar os hokan (comediantes), pintores da Escola Kano, atores de kabuki, dançarinos, geishas e cortesãs. As procissões de cortesãs eram aparatosos eventos nos quais a turbe se acotovelava por um vislumbre das geishas mais exclusivas. As cortesãs acompanhadas da sua comitiva desfilavam elegantemente pelas ruas, ostentando penteados e kimonos dispendiosos. Enquanto as cortesãs de renome não necessitavam de exposição, as de menor estatuto eram exibidas nos harimise dos salões de chá ou em janelas com vista para a rua. Eram tipicamente dispostas em três filas e apresentavam um espetáculo musical entre o pôr-do-sol e a meia-noite.
Numa fase inicial, o contrato de uma cortesã tinha um limite máximo de 10 anos, no entanto, em fases posteriores as durações foram aumentando. Um contrato típico, por volta de 1800, era firmado pelo pai ou guardião legal de uma rapariga, que era compensado com uma soma avultada (e.g. 25 ryô por um contrato de cinco anos).
A frequentação dos yukaku podia ser extraordinariamente onerosa. Para penetrar nos círculos mais restritos não era apenas necessário despender largas somas de dinheiro mas também ter conexões nas altas esferas da sociedade, assim como uma reputação de capital cultural. No auge da projeção cultural do bairro, por volta de 1750, apenas os tsû, isto é, os clientes com maior reputação de familiaridade com a etiqueta de Yoshiwara, podiam consultar as cortesãs de maior estatuto. A primeira visita custava aproximadamente 10 ryô, uma soma exorbitante para a época, que era repartida entre a cortesã e a sua numerosa comitiva de assistentes.
O apogeu da influência cultural de Yoshiwara foi atingido no decurso do século XVIII quando uma vaga de artistas e escritores lá encontraram um refúgio da frugalidade e da rigidez do sociedade japonesa, estabelecendo-se nas suas imediações. Encontraram inspiração no seu ambiente alternativo e nos seus frequentadores clientes e patronos. Um dos mais notórios publicadores do período, Tsutaya Jûzaburô foi aqui nascido e criado, enquanto o autor Santô Kyôden (1761-1816) aqui abriu a sua tabacaria. A travessia de barco até ao bairro era imaginada como a jornada simbólica entre o “inferno” da vida quotidiana e o “paraíso” de Yoshiwara. É neste contexto que surge o eufemismo satírico do Geppon (“a terra da lua nascente”), que contrastava com o Nippon (“a terra do sol nascente”).
O bairro foi repetidamente atingido por incêndios (são conhecidas as datas de 1644, 1676, 1768, 1771, 1786, 1812, 1816, 1824, 1845, 1860, 1862 e 1866) pelo que existe registo de ter sido recolocado pelo menos dezoito vezes em diversas localizações temporárias ao longo do período Edo.
A partir de 1760, o bairro de Yoshiwara entra numa lenta e progressiva decadência. Já no decorrer do século XX, o bairro é gravemente danificado por um incêndio e é quase totalmente destruído pelo Grande Terramoto de Kanto, em 1923. Apesar dos danos causados por estas catástrofes, permaneceu em funcionamento até a prostituição ser ilegalizada pelo governo japonês após a Segunda Guerra Mundial, em 1958.

LAC

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